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1984-2001: Quando a realidade supera a ficção

Atualizado: 15 de mar. de 2020

A privacidade está no centro dos entendimentos mais básicos da dignidade humana – a capacidade de fazer escolhas autónomas sobre as nossas vidas e relacionamentos sem interferência externa ou intimidação é central para quem somos como seres humanos


If you want to keep a secret, you must also hide it from yourself.

- George Orwell, 1984


A evolução, por alguma razão não inteiramente conhecida, ao ter dotado a espécie humana de um patamar de consciência superior, permitiu que esta nos conferisse a capacidade de inferir de forma mais complexa e exata, informação sobre o mundo, nomeadamente sobre os outros seres humanos com os quais nos relacionamos. A complexidade das relações humanas, um pré-requisito natural para o estabelecimento das sociedades modernas, levanta a necessidade de ocultarmos dados com o intuito de nos protegermos daqueles que, detendo conhecimento sobre nós, nos conseguiriam manipular, condicionar, catalogar, impor ou envergonhar. Este processo começa a tornar-se mais evidente ainda numa tenra idade, à medida que surge a percepção da existência de nós próprios e dos outros, do mundo intra e inter-pessoal. De facto, o conceito de privacidade tenta munir-nos com um direito que previne uma intrusão indesejada por outras pessoas, instituições ou mesma pela sociedade na nossa vida íntima e privada. E embora tenhamos a tendência para achar que a própria definição de sociedade democrática previne o uso abusivo da invasão da privacidade dos seus cidadãos, estamos inconfundivelmente enganados. Simplesmente, os métodos utilizados são subtis ou mesmo invisíveis ao olho comum.


Desde 2013, a nossa perspetiva sobre o alcance da monitorização dos cidadãos mudou com a denúncia de um interveniente (desde então) histórico chamado Edward Snowden. Como sabemos, as suas revelações tornaram públicos documentos altamente confidenciais pertencentes à National Security Agency (agência de inteligência americana) e à GCHQ (agência de inteligência britânica) que expunham os projetos de vigilância massificada e indiscriminada de toda a população mundial com o intuito de combater o terrorismo, após o 11 de setembro, em 2001. Os diversos projetos, revelaram os vários documentos, podiam ser resumidos como uma batalha da NSA contra os sistemas de encriptação comerciais, com a colaboração de inúmeras empresas de tecnologia e mesmo com recurso a estratégias paralelas com vista a empobrecer os padrões internacionais de encriptação de dados. O acesso a dados de plataformas como Yahoo, Google, Facebook, Youtube, Skype, Microsoft, Apple permitiram à NSA construir um “padrão de vida”, um perfil detalhado do indivíduo e de todos aqueles que lhe estão associados, contendo quer a nude do Nuno, quer os e-mails de decisores políticos do Parlamento Europeu.

De facto, seria insensato discutir este conjunto de projetos sem avaliar o sucesso do objetivo para o qual foi criado, o do combate ao terrorismo. Evidentemente, este é um tópico que gera incerteza e discussão. Imediatamente após as revelações de Snowden, o diretor da NSA, o general Keith Alexander, afirmou que os sistemas de vigilância da agência teriam contribuído para a prevenção de 54 golpes no mundo inteiro. Mais tarde, o vice-diretor John Inglis, segundo o The Guardian, confessou que apenas 1 possível atentado teria sido evitado exclusivamente pelo programa de recolha massificada de dados telefónicos.


Atualmente, é impossível não termos conhecimento de um ataque terrorista. Estes eventos, pela sua brutalidade e violência (incaracterísticas do mundo ocidental), inundam as manchetes de qualquer entidade noticiosa. A reação visceral que cada um de nós sente perante um determinado acontecimento terrorista altera profundamente a nossa perceção global dos eventos e da sua frequência relativa. É precisamente este viés cognitivo que vai condicionar uma previsão incorreta, neste caso, da frequência de atentados, fenómeno designado pela psicologia como heurística da disponibilidade. O terrorismo é responsável por 0,05% de todas as mortes mundiais, ocupando o penúltimo lugar no ranking, antes das mortes provocadas por desastres naturais. Citando Yuval Noah Harari: Statistically you are your own worst enemy. At least, of all the people in the world, you are most likely to be killed by yourself, o que mostra que, se o objetivo principal for a preservação da vida, campanhas educacionais direcionadas para a saúde da população são um instrumento com potencial para ser muito eficaz.

Com isto, convém referir que os cidadãos são muitas vezes sujeitos a análises simplistas, que opõem erroneamente valores que podem coabitar pacificamente, neste caso, os nossos direitos e liberdades individuais ou a segurança. Aquilo que se passou nos Estados Unidos era um perfeito desequilíbrio entre estes dois valores, uma vez que a procura insana de um dos lados não legitima o esquecimento da importância do outro. Tem de haver uma conciliação na tentativa de preservação das liberdades e direitos individuais e da segurança da população, pelo que qualquer mudança de paradigma na relação destes princípios tão basilares deve ter o voto e o conhecimento da população.


O mote “inocente, até prova em contrário” é estruturante num Estado de Direito. Um indivíduo presumidamente inocente e sem a suspeição prévia que o ligue a um ato ilícito, não deveria ser espiolhado pelos serviços de inteligência. A gravidade deste evento é explicada por várias razões: por um lado, os projetos serviram propósitos internacionalmente condenáveis – um exemplo foi o de Dilma Rousseff, cujo e-mail foi hackeado pelos serviços de inteligência americanos; por outro lado, num estado democrático, a população não teve o conhecimento de um projeto que lhe negava o direito à privacidade sem o seu consentimento, isto é, o Nuno não tinha maneira de saber que, sem a necessidade de qualquer mandato, podiam vê-lo no duche a cantar o último single da Taylor Swift.

Além disso, enfraquecendo as proteções que os utilizadores da internet achavam que estavam asseguradas, não é difícil de imaginar uma série de cenários: empresas seguradoras beneficiarem de dados como registos médicos para aumentarem o seu lucro; empresas discriminarem no processo de contratação de indivíduos com base em dados pouco representativos do passado pessoal do candidato. Da mesma forma, se estas agências de inteligência conseguem facilmente recolher informações sobre quem foi contactado por um jornalista, o anonimato dos denunciantes encontrar-se-á objetivamente em risco.


A privacidade está no centro dos entendimentos mais básicos da dignidade humana – a capacidade de fazer escolhas autónomas sobre as nossas vidas e relacionamentos sem interferência externa ou intimidação é central para quem somos como seres humanos. Para isso, é necessário ter condições sociais, políticas e tecnológicas externas que tornem essa decisão possível. Este tema intemporal é transversal a muitas outras temáticas atuais, nomeadamente a manipulação de eleições e a publicidade personalizada, com a utilização de métodos de manipulação absolutamente intrusivos – põe-se a hipótese de num futuro próximo os anúncios online utilizarem figurantes com feições resultantes da fusão da cara do próprio com a de um amigo próximo, o que leva a que, embora não identifiquemos as origens do indivíduo, pela sua familiaridade, estejamos impelidos a comprar o produto.

A autonomia privada é uma componente essencial da vida pública e do debate. Por consequência, a privacidade não é apenas um valor social, é também um bem público. Seria um erro pensar que este tipo de programas não nos ameaça a todos igualmente. São uma arma contra o nosso direito à privacidade, contra a liberdade de expressão e, fundamentalmente, contra a democracia.

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