Antes de tudo é necessário compreender a ideia que o Homo sapiens não é só um produto cultural, é também um produto biológico. Entender esta simbiose é entender a natureza humana. Esta é e será a resposta para erradicar de vez preconceitos gerados por séculos de ignorância acumulada.
Crónica de António Vaz Pato, estudante de Biologia na FCUL
com a gentil colaboração dos seus colegas Maria Paes, Afonso Barrocal, Tiago Carrapiço, Joana Azevedo e Margarida Pires
Realmente, se, de alguma maneira, pudesse haver uma cidade ou um exército de amantes e de amados, não haveria melhor administração da vida do que esta;(…) se combatessem uns com os outros, eles venceriam todos os homens. É que um homem que ama, julgo eu, mais dificilmente aceitaria abandonar as fileiras ou largar as armas sendo visto pelo seu amado do que se o fizesse à vista de todos. Diante dele, escolheria mil vezes morrer.
in O Banquete, Platão
As palavras que dão o mote a esta crónica são de Fedro, um dos convidados de Agathon no famoso Banquete de Platão. Não foram raras as vezes que a homossexualidade foi abordada no textos da Antiguidade Clássica, como também não são raros os debates modernos sobre este tema. Ao longo da história, a homossexualidade já foi, para gáudio da ignorância e da estupidez, apelidada de crime, pecado ou até mesmo doença. Contudo, à semelhança do exemplo helénico, também já foi (e é) encarada por sociedades humanas primitivas com toda a naturalidade, tanto que muitos desses povos nem tinham palavras para definir esse comportamento. Proponho-me a analisar este tema porque vejo a homossexualidade não como algo raro ou curioso, mas sim como um comportamento com base no amor que merece ser legitimado e compreendido. Urge, portanto, esclarecer o equívoco da falácia modernista*. Fará sentido interpretar a homossexualidade num contexto meramente cultural ou será pertinente abordá-la segundo uma perspectiva biológica? Será este comportamento simultaneamente um sub-produto da liberalização dos costumes e de milhões de anos de evolução humana? Para responder de forma mais completa à pergunta teremos de analisar aquilo que a Biologia e a Antropologia nos dizem sobre a persistência da homossexualidade no contexto evolutivo.
*One of the fallacies of using homosexual and homosocial behaviours as manifest in the present is that the modern homosexual subculture is a modern product – a product of the development of large cities where people with particular homosexual predilections can specialize into a homosexual subculture or satellite culture and predominantly or exclusively select same-sex partners
Michael Ross, The modernist fallacy in homosexual selection theories
Antes de passarmos à análise propriamente dita, sublinho ao leitor que maior parte dos estudos não se referem à homossexualidade estrita (preferência exclusiva por parceiros do mesmo sexo), mas sim à manifestação do comportamento homossexual do indivíduo. O ponto de partida para os estudos sobre a homossexualidade é geralmente aquilo que ficou conhecido como o Paradoxo Darwiniano da Homossexualidade. O Paradoxo diz-nos que o comportamento sexual homossexual não gerará descendência, logo poderíamos deduzir (precipitadamente, antecipo já) que indivíduos que expressam fortemente atração sexual por indivíduos do mesmo sexo terão menor sucesso reprodutivo e serão menos aptos, ou fit no inglês. Sendo assim, resta responder às perguntas do paradoxo: “Como é que esta característica evoluiu e como se manteve nas populações?”.
Information on Hanuman langurs (Semnopithecus) and bonobos, as well as various macaque and baboon species, thus supports the view that homosexual behaviour may serve widespread functions in primate social communication.
Alan Dixson, Homosexual Behavior in Primates
Talvez o primeiro passo para construir o argumento nesta matéria seja olhar para os seres vivos filogeneticamente mais próximos do Homo sapiens, por outras palavras, os vulgos macacos. Segundo Alan Dixson, 3 géneros de Macacos do Novo Mundo, 13 géneros de Macacos do Velho Mundo e todos os grandes símios (grupo que inclui orangotangos, bonobos, chimpanzés e gorilas) apresentam comportamentos homossexuais. Analisemos mais em detalhe a espécie mais próxima de nós, o bonobo (Pan Paniscus). O bonobo é, tal como os seus primos primatas, um animal com fortes características sociais. O facto de viverem em comunidade gerou comportamentos que, a longo-prazo, se transformaram em pressões selectivas sociais. No seio destes hábitos podemos referir as reconciliações após confrontos violentos, as actividades pós-gromming (o gromming remete para as acções de limpeza e higiene dos indivíduos da comunidade) e a entrada de novos indivíduos num grupo. Como tal, a ritualização dos padrões sexuais conduziu a interações homossexuais que servem propósitos sociais muito relevantes. A capacidade de estes animais, à semelhança do ser humano, sentirem prazer no acto sexual tem de ser tida em conta no contexto da evolução destes comportamentos, uma vez que pode ser em parte responsável pelas pressões selectivas, nomeadamente a redução da agressividade reactiva, o aumento da afiliação, comunicação e integração sociais e a atitude pró-social. Os dados da Biologia Comparativa, por conseguinte, oferecem-nos informação importante para desenharmos o caminho evolutivo do Homo sapiens no que diz respeito às suas características fisiológicas e comportamentais.
Todavia, para validar modelos de estudo como estes surge a necessidade de interpretar resultados no campo da Genética Humana. Os estudos dos últimos 30 anos não produziram uma resposta concreta e grande parte da investigação infelizmente (isto é transversal às áreas cientificas abordadas na crónica) incide na sexualidade masculina. Em todo o caso, existem evidências que devem ser mencionadas. Aquilo que está escrito nas sequências genéticas não permite explicar per si alguns fenómenos, pelo que talvez estejamos a observar algo que é controlado por mecanismos epigenéticos. Fazendo uma analogia para o leitor melhor compreender a epigenética imagine um compêndio vastíssimo de receitas de cozinha, que será o nosso DNA. Dentro dessa enciclopédia culinária existem numerosos capítulos que contêm informação relevante para fazer pratos maravilhosos, que serão os nossos genes. O leitor pode folhear esse mesmo compêndio e ignorar certas receitas que não lhe interessam, apostando noutras mais exóticas, se assim for o seu gosto. A epigenética funciona desta maneira. A informação na sequência não se altera, altera somente a forma como a lemos e expressamos. Uma das ideias mais interessantes que surgiu em epigenética sobre este tema diz respeito à produção hormonal durante a gestação. Esta produção é controlada por marcadores epigenéticos. Estes marcadores, herdados dos pais, “escondem” sequências do DNA, deixando “a descoberto” outras. Essas mesmas sequências têm informação para produzir diferentes hormonas que vão estimular o desenvolvimento do feto durante o período da gravidez. Quando certos marcadores epigenéticos (não identificados ainda) são passados de uma geração para outra, a criança poderá ter um desenvolvimento físico correspondente ao sexo do par de cromossomas sexuais (XX, nas mulheres; XY, nos homens), mas ao mesmo tempo ter um desenvolvimento cerebral guiado por esses marcadores que estabelece a “preferência” sexual de indivíduos do sexo oposto. Trocando por miúdos, uma mãe pode passar para o seu filho um marcador discordante que desenvolverá a “preferência” sexual feminina, resultando assim em homossexualidade. Estas teorias precisam ainda de ser provadas, mas a Genética será sem dúvida a área que, a partir do momento em que produzir resultados claros, poderá esclarecer as questões da hereditariedade e da evolução da homossexualidade.
Sexually antagonistic selection is at present recognized as a powerful mechanism through which genetic variation of fitness is maintained despite sexual selection in biological populations, in insects, birds, and mammals, leading to population divergence and possibly speciation.
A. Camperio-Ciani, Sexually Antagonistic Selection in Human Male Homosexuality
De uma perspectiva antropológica têm surgido teorias interessantes baseadas em modelos teóricos. A título de exemplo, refiro algumas das mais populares. a Kin Selection Theory responde ao dilema do paradoxo ao sugerir que os indivíduos com forte manifestação homossexual actuam como caregivers das crias dos seus irmãos, garantindo o sucesso reprodutivo dos indivíduos mais próximos geneticamente. Esta hipótese fará sentido se partirmos do pressuposto que existe um altruísmo inerente a estes indivíduos. Outra proposta recorrente é a Teoria do Antagonismo Sexual (TAS). A TAS considera que diferentes genes (ainda não identificados) podem contribuir para a manifestação de comportamento homossexual num macho e esses mesmos genes presentes numa fêmea da família podem potenciar a sua fertilidade e, consequentemente, o sucesso reprodutivo. Ainda no âmbito da antropologia, Michael Ross chama a atenção para a importância das ligações homossociais entre machos, uma vez que as fêmeas têm maior tendência a acasalar com indivíduos que apresentam características sociais fortes. As interações homossexuais têm correlação directa com a homossocialização, sendo que esta por sua vez reflecte a aptidão do indivíduo. É preciso notar que dentro deste contexto analisa-se uma vez mais o comportamento homossexual enquadrado numa matriz bissexual.
Hoje em dia não existem respostas claras. Dados empíricos provenientes da Arqueologia e da Biologia Comparativa são em parte ambíguos e a Antropologia apresenta modelos teóricos baseados em hipóteses que, apesar de terem força argumentativa, permanecem especulativas. Todavia, os esforços dos últimos 30 anos têm sido essenciais para deitar por terra todos os estudos “científicos” do passado que serviram para legitimar propósitos hediondos de crime e castigo. A Biologia da Evolução oferece-nos hoje sinais importantes no sentido de encaramos a homossexualidade como um comportamento social igual aos outros. Tenho consciência de que os apontamentos que deixo nesta crónica são uma fracção ínfima daquilo que já foi investigado e discutido, ao longo do texto fui colocando hiperligações que remetem para artigos que aprofundam muito estas anotações.Em todo o caso, temos condições actualmente para reconhecer a importância fulcral da homossexualidade na evolução do ser humano. Existe um crescente interesse por esta área e muitas das respostas a questões socio-culturais podem residir no conhecimento da nossa evolução como espécie. A homossexualidade é uma dessas questões. Antes de tudo é necessário compreender a ideia que o Homo sapiens não é só um produto cultural, é também um produto biológico. Entender esta simbiose é entender a natureza humana. Esta é e será a resposta para erradicar de vez preconceitos gerados por séculos de ignorância acumulada.
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