O “ser do contra” é uma arte que faz, ou já fez parte do repertório de todo o cidadão comum. Do desafio à autoridade na infância à hostilidade cínica na fase adulta, define-se como a arte de combate à letargia que nos rodeia e aborrece, relembrando-nos que o confronto é uma das formas mais sublimes de expressar liberdade
Crónica de Afonso Madeira Alves
Nos últimos anos, os adeptos de futebol em Portugal habituaram-se a ouvir (e a adoptar sempre que necessário) a expressão bélica, “Contra tudo e contra todos!”. A vivacidade do lema, suportada na sua extensa amplitude entre o orgulho e a cólera, pretende resumir o mais recente sucesso ao objectivo medular de todos os mortais: o feito aproximou-os da tão desejada imortalidade. O caminho até à imortalidade, ou até ao título de campeão, é traçado somente por contornos heróicos, dignos da língua de Camões, importando pouco se estes correspondem à realidade. Derrotaram monstros impregnados de corrupção e ódio, foram autênticos super-homens a quem nunca se deu uma migalha de benefício.
A narrativa a preservar é bastante simples e reduz-se a dois princípios: 1) Ganhámos porque somos diferentes; 2) Ninguém queria o nosso sucesso, mas foram incapazes de nos travar. Contra estes factos, que não abrem espaço a qualquer interpretação de outras abordagens que não a do “contra”, não nos surpreendamos se os argumentos fugirem ao que se pediria como ponderado e racional. É a vitória do Homem sobre os deuses que está em discussão. Somos sempre David, nunca Golias.
Na verdade, o “ser do contra” é uma arte que faz, ou já fez parte do repertório de todo o cidadão comum. Do desafio à autoridade na infância à hostilidade cínica na fase adulta, define-se como a arte de combate à letargia que nos rodeia e aborrece, relembrando-nos que o confronto é uma das formas mais sublimes de expressar liberdade — sendo que a mais sublime continuará a ser a escrita de um poema que não rima.
No entanto, não há arte que tenha sofrido maior deturpação do que esta. No desporto, na política, em nós: transformou-se o ser do contra em algo patológico, previsível, tão mundano quanto a ignorância. Converteu-se a arte de ser do contra na performance mais preguiçosa desde que o pop descobriu o playback. A sintomatologia de uma arte que albergava rebeldia, desafio e descontrolo, impecavelmente nutrida por uma genuína vontade de mudar o rumo, foi envenenada pelo universo maniqueísta que descarrega as actuais discussões em entretenimento monty pythiano de cinco minutos:
- Yes, it is.
- No, it isn’t.
Como remata a personagem de Michael Palin, discussão não é o mesmo que contradição. Nem sempre quando estamos em desacordo agimos da mesma maneira. Elevar a arte do contra não converge com clamar vergonha a cada episódio semanal de polémica tornada estéril. Invariavelmente, será um bom artista aquele que opta por ser o último a intervir, de forma a colocar a peça que falta e que se encontrava escondida dos outros até então; porventura, será também o menos exaltado, por no entretanto terem deixado de procurar por tal peça.
Ouvimos que a História nos lembra apenas dos mordazes e irascíveis. Daí, da tal busca de imortalidade que partilhamos, assumimos hoje que é difícil mantermo-nos longe daquilo que sabemos ter efeito imediato: um qualquer take fundamentado q.b. e que explora logo no título aquilo a que o alemão Max Weber chamava de “ditadura fundada na exploração da emotividade das massas”. Exploradores desta performance cuja arte da escrita é secundada são apelidados de enfants terribles, que presentes em praticamente todo o lado, vendem-se pelo rótulo de presumível mascote de uma alta missão de defesa da cultura de liberdade de expressão. Esse rótulo é capitalizado imediatamente em livros editados, entrevistas, discursos em palanques e quejandos.
O receio ilustrado por Tocqueville de ver a Democracia degenerar numa “tirania da maioria” é usado e abusado por parte daqueles que, emitindo do seu espaço que se fosse casa seria mansão, se dizem alvo de censura, de serem perseguidos pela sua opinião contraditória ao status quo descrito em Orwell. Porém, com jeito se esquecem que a democracia liberal, não apenas como regime, mas principalmente como condição social, permite que a cultura de liberdade seja definida como igualdade perante a lei. Dir-nos-ão que estão a ser cancelados, termo que transverte subitamente em vítima o herói de outrora. Denominados perpetradores da emergente “cultura do cancelamento” ripostam ao negar a existência de algo que sempre existiu, escondendo a sua ineficácia amadora de bolha.
Assim, em histórias sem verdadeiros heróis ou vilões, todos estão apenas a ser alvo do nosso maior hábito democrático: criticamos de quem discordamos, e no dia em que não o fizermos, viveremos sob algo ainda pior do que uma famigerada tirania da maioria. Na piada popularizada pelo jeito cómico de Slavoj Žižek,importa muito mais dizer o que negamos, pois também isso faz parte da nossa identidade: café sem leite não é igual a café sem creme.
Numa recente entrevista o cronista do Público João Miguel Tavares intitulava-se como alguém que “desempenha um papel importante na comunicação social portuguesa”. Assumindo que “a provocação faz parte de uma presença interessante no espaço público”, relembra-nos do papel de cronistas como Vasco Pulido Valente, uma figura histórica reconhecida por não saber dar opiniões insípidas.
Ora, no livro Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente, da autoria do jornalista João Céu e Silva, o memorável historiador, já em fim de vida, assume que tinha sido informado pelos amigos mais próximos que “atirar a pedra ao próximo constituía um exercício seguro e, por implicação, cobarde". Entre lamentos vários por ter perdido tanto tempo de vida em tricas que o impediram de nos ter deixado uma obra completa sobre a História do século XIX, Vasco Pulido Valente, exímio na arte de ser do contra, dá-nos o seu maior contributo mesmo antes de um último suspiro: não somos heróis porque esses não são cobardes.
A devoção à arte de ser do contra impede o artista de vestir o papel de herói, sobrando-lhe os de vilão ou anti-herói. Hoje, em tempos de extremismos e negacionismos, o papel de vilão é ingrato e até inútil para quem não está interessado em confundir regime e sistema. Contudo, o amor incondicional que receberá de uma facção poderá ser suficientemente acolhedor para suportar os ataques provenientes de quem tem tempo para odiar. Restando o papel de anti-herói, aquele que luta a boa luta por fora dos holofotes, apenas lhe é dada uma garantia: mesmo que seja campeão, ninguém o vai levar em ombros até à imortalidade.
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