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A Cicatriz - crítica literária

de Pedro Teixeira Brites


Atenção: este texto contém spoilers do livro A Cicatriz de Maria Francisca Gama. Depois do bruá que se gerou à volta do livro A Cicatriz, com longas filas de reviews positivas a serem vulgarizadas por algumas críticas inflamadas, decidi dar uma oportunidade a um livro que, desde o começo, me pareceu algo caricato.


A forma como o descubro também o é: a primeira vez que ouço falar da obra, percebo que envolve um evento altamente traumático, que é curto e tem um bom ritmo. Da segunda vez que me referem a A Cicatriz, descubro três coisas que até então não fazia ideia: é um livro de uma autora portuguesa, esta é jovem e o livro tem inúmeras referências à cultura portuguesa.


Antes de partir para as quatro frases (ou momentos) que marcam este livro (porque críticas gerais já foram muitas escritas), queria deixar uma nota: não considero o livro mal escrito – as palavras não foram vomitadas para o papel e coladas com saliva.


Nota-se algum brio e cuidado na linguagem. É um livro que, reconheço, tem quase tudo para ser um sucesso: a velocidade, a linguagem por vezes corriqueira, as referências que todos nós ouvimos no dia-a-dia e o evento traumático que faz os leitores perderem-se em emoções e fá-los acreditar que a experiência que tiveram do livro foi boa por isso mesmo: sentiram.


Mas as sensações pouco me dizem: se vir um filme medíocre com uma cena altamente explícita e violenta, o filme irá marcar-me e eu sentirei inúmeras coisas (repulsa, nojo, medo) sem, por isso, o filme deixar de ser medíocre.


Como já disse, nota-se trabalho e nota-se que não estamos a ler um livro construído às três pancadas por alguém que decidiu rabiscar umas palavras soltas e pedir a uma editora para as publicar. Não é, no entanto, por isso que não deixo de considerar que há inúmeras questões que este livro levanta que são, a bem dizer, ridículas.


“Há qualquer coisa bonita na pobreza”


O tom da fase inicial do livro (antes da violação) dá-nos a entender que este vai ser o diário de viagem de uma mulher, aquando da sua ida ao Rio de Janeiro com o namorado. Os lugares que visita, a forma como os descreve, o “açaí”, as músicas brasileiras, os excertos de livros brasileiros mencionados, as referências a Portugal: (a falar do Rio) “É uma mistura do calor asfixiante do Alentejo veranil com a brisa quente que só se faz sentir nas noites de maior calor em Lagos” ou frases como “olhámos para a ementa (que, no Brasil, se diz cardápio)”… tudo ali se perfilava para poder ter sido escrito num blog de uma viajante – e isso não tem qualquer mal. No entanto, a frase com que Francisca Gama abre o livro deixa fugir as dúvidas sobre que tipo de olhar ia a narradora ter sobre o Brasil, o Rio e tudo o que este é.


O clichê, a insensibilidade, a falta de noção, o vazio. Esta é exatamente a primeira frase do livro. Em tom de brincadeira, disse para mim próprio que ia ficar por ali e desistir de algo que, claramente, me ia fazer ficar com os nervos à flor da pele.

É uma frase que “condena” o livro à partida e que nos faz uma promessa pouco apelativa: daqui para a frente vamos lidar com a romantização da pobreza, da miséria. Vão servir-nos em bandejas de prata a imagem dos morros e das favelas como sendo uma refeição gourmet. O olhar do turista privilegiado que, ao ver um miúdo com roupas gastas e descalço, pensa “que fofo”.


A pobreza não tem nada de bonito. Parece-me evidente, mas, aparentemente, não o é. A pobreza não tem nada de bonito porque ir dormir com fome, esticar um mísero salário para este durar até ao fim do mês, negligenciando necessidades básicas, não poder comprar todos os medicamentos necessários e viver numa casa degradada não tem nada de bonito. Quem diz que a pobreza tem algo de bonito, nunca a viveu.


Esta frase remete-me para duas imagens: a primeira é a cena de pôr do sol em que uma personagem de classe alta, vendo-se rodeada de pessoas de classe abaixo da sua, diz: “os pobres são tão divertidos”.



A segunda é uma cena de Parasitas, em que um motorista ouve a passageira (de classe alta) referir com felicidade que o céu está azul graças à chuvada do dia anterior (que tinha inundado a casa do taxista e de todos os seus vizinhos que viviam em condições precárias) e que se controla para não dizer nada.


Nem de propósito, linhas abaixo, um taxista brasileiro reage de forma semelhante, à bizarria dita por uma das personagens que ia no banco de trás: “O taxista ouviu o comentário dele e soltou entre dentes um suspiro que teve tanto de impaciente como de piedoso.”


Para consolidar ainda mais este início despropositado, a autora termina um parágrafo da seguinte forma: “a humidade noturna e a persistente neblina dos dias que, talvez de propósito, tenta esconder dos visitantes os morros carregados de miséria. No entanto, isso, ao longe, parece ser o mais bonito da cidade.”


Esta frase é o reflexo de boa parte deste livro: o privilegiado, com trejeitos de grandeza (“aquela semana, ali, sentíamo-nos ricos, com um poder de compra que nunca tínhamos tido”), olha para uma realidade longínqua, que não vê bem nem conhece bem e, por isso mesmo, acha-a bonita.


“Nunca…”


Durante a leitura do livro, uma das coisas que senti foi a forma como a autora encarou os leitores. Se muito se elogiou o ritmo do livro, acho que há um reparo a fazer. A forma como, muitas vezes, a autora utiliza a subtileza de um pé de chumbo num concurso de ballet para fazer suscitar curiosidade ao leitor em relação ao que vai acontecer é mais do que evidente durante grande parte do percurso até ao momento da violação.


A autora passou um livro inteiro a dizer que vai acontecer algo, que “nunca” mais vai acontecer X ou Y, a fazer premonições que são apenas uma tentativa da autora de manter o leitor agarrado na base do “se ficarem, eu juro que chego lá porque vai acontecer algo muito sério” e não tanto pelo que se está a contar.


A quantidade de vezes que está subentendido que a personagem vai fazer algo que implique que nunca mais faça nada (suicídio ou algo semelhante) é tão insistente e contínua que me faz pensar que raio de suspense é este, em que nós estamos constantemente a ser avisados do susto que vem aí.


“Desculpa por nunca ter dito”, “sorte a minha de saber que o fim se aproxima”, “se guardasse este segredo, nunca descansaria em paz”, “não fui mãe. Hoje, posso afirmar que nunca o serei”, “sabendo que o seu fim está próximo e que já nada importa” … tudo isto são excertos retirados do primeiro terço do livro e demonstram que o evento de suspense que a autora “guarda” para si até ao clímax do livro é o segredo mais mal guardado do Rio de Janeiro. E já que este livro tinha tantas frases clichês, deixo aqui uma: “menos é mais”. Não é necessário o autor desfolhar tudo; o leitor acabará por lá chegar, até porque quem lê não é desprovido de sentidos.


“Dei por mim a achar que tinha mesmo sido violada”


Uma jovem privilegiada escreveu um livro depois de fazer umas férias no Rio de Janeiro e decidiu dar interesse a esse diário de viagem acrescentando um evento trágico, altamente gráfico e violento – as sensações acima da mensagem.


A forma como este livro toca em temas sensíveis – da violação sexual à saúde mental e ao suicídio – poderia implicar que a autora teria o cuidado de evitar a forma teatral e baseada em estereótipos com que abordaria a trama durante o seu livro.


Não o fez: a vítima foi violada num beco escuro por homens de um país de terceiro mundo (mais pobre, mais violento, mais perigoso) e matou-se na sequência. É uma escolha da autora escolher esse caminho, da mesma forma que é uma escolha do leitor considerar, ou não, que este livro se cimenta e deambula sobre estereótipos vazios.


Para terminar, a autora esclarece a dificuldade que foi escrever o livro. A forma como tentou partir da perspetiva do agressor para contar a sua história e o quanto isso a incomodou. Aliás, é neste desabafo centrado em si própria que “morre” a pior frase de todo o livro (e a segunda parte que mais confusão me fez): “Chorei muito ao escrevê-lo e cheguei a ter de me afastar deste livro para poder seguir com a minha vida afetiva e sexual porque dei por mim a achar que tinha mesmo sido violada. O que não aconteceu.”


Será muito difícil para mim comentar esta frase. Não há aqui açaí ou vendedores ambulantes das praias do Rio que valham porque só alguém com uma profunda falta de sensatez diria algo assim.


A autora que escreveu o livro “de um lugar de profundo respeito” foi a mesma que, por ter escrito um relato de uma violação (e ter feito desse momento o centro do seu livro), achou que tinha sentido a dor de alguém que já foi violentado. Pior, não teve vergonha de o escrever para milhares de pessoas o lerem. Esta frase é séria candidata a frase mais desprovida de noção e bom-senso da literatura portuguesa.


“Para a esquerda os ricos, para a direita os pobres — ou talvez ao contrário, se pensarmos politicamente)”


Durante o livro, vários foram os momentos nos quais a autora partiu de lugares-comuns, com ideias sem nexo ou próximas daquilo que é o mundo real. Desde as questões afetas ao Brasil e à sua cultura, passando por referências ao panorama político português, este livro é riquíssimo em apontamentos ridículos que têm como objetivo mostrar ao leitor que a autora do livro é um ser político e tem opiniões.


Ser-se politizado e ter opiniões políticas é o comum, atenção. O que não é comum é que se force para passar essa mensagem ao estilo “vejam, eu tenho uma opinião! eu opino e sou um ser político! eu sou de direita!” em momentos ausentes de sentido para o fazer. 


“Enquanto o Partido Socialista continuasse a governar com maioria absoluta, duvidava ser possível para os jovens como nós. Vítimas da Troika; das trapalhadas do BES (…) da pandemia covid-19 e da inflação galopante, resultante da invasão da Rússia à (…) e também aos grandes grupos económicos que, nessa onda, e muito «à portuguesa», se tinham aproveitado.”


A menção ao PS, à Troika, ao BES…muitas referências, mas sempre com total ausência de profundidade. É tudo debitado como se tivesse algum sentido e significado, mas não passa de um vomitado de ideias plantadas no livro para lhe dar um traço relatable, que nenhuma ligação terá com a história nem nenhuma complexidade acrescentará à narrativa, até porque são referências que morrem no momento em que são escritas. São escritas e esquecidas ali mesmo, não se dá continuidade, não se explora nada. Enumeram-se acontecimentos.


A personagem, “uma das primeiras militantes da Iniciativa Liberal”, tem duas referências políticas que me causam particular urticária. A primeira, já referida: (“para a esquerda os ricos, para a direita os pobres — ou talvez ao contrário, se pensarmos politicamente”) é um autêntico tratado.


Qual o significado desta frase? Que há direita votam os ricos? Que há direita votam os que querem ser ricos? Que a esquerda cria pobres e a direita ricos? Esta frase surge numa descrição da cidade e em como esta está geometricamente organizada. A referência política nasce da mesma forma como sucumbe: do nada e para o nada. Nada se retira de um apontamento que tem tanto de oco como de despropositado como este.


A segunda referência é também o momento que me fez ficar totalmente boquiaberto a encarar as páginas deste livro: perante a possibilidade de escolher entre o caminho da direita e o da esquerda para regressar ao hotel, a autora desenha dois momentos. Num deles,  fictício, as personagens vão pela direita e chegam felizes e sãs. No outro, o real, as personagens vão pela esquerda, onde vai ocorrer a tragédia que já estamos à espera desde o início do livro.


Nesta circunstância, poder-se-ia suspeitar de um apontamento político (esquerda como caminho para todo o mal e direita como o oposto), mas seria sempre infundado, deixando os leitores na dúvida sobre a existência de uma intenção ou não por parte da escritora naquela simbologia. E seguiríamos em frente, sem nenhuma questão a apontar.


No entanto, à semelhança da forma desastrada como foi tentando criar suspense no livro, a autora tem um parágrafo absolutamente incrédulo antes de falar sobre as consequências de ir para a esquerda.


No capítulo “Para a direita”, é descrito que as personagens saem do restaurante e fazem uma pequena viagem a pé até ao hotel. Chegam bem. São duas páginas, de um relato bastante tranquilo.


No início do capítulo “Para a esquerda”, o propósito da autora é diferente e os dois primeiros parágrafos servem para falar de política: referir que o pai da personagem sempre foi “esquerdalha”, que este era contra “a meritocracia” (seja lá que corrente de esquerda for essa), que “Ela” foi das primeiras militantes da IL…


No fundo, a autora achou por bem politizar a decisão que levaria à violação da personagem principal. Eles optam pela esquerda e a tragédia acontece.

Aqui, o livro perdeu qualquer valor que ainda poderia ter para mim. Qual o sentido de fazer isto, qual a intenção por detrás de dois parágrafos sobre política antes de uma violação?


Onde é que sequer há algo politizável neste contexto? Que é que vai na cabeça de alguém que, aproximando-se do relato bastante gráfico de uma violação sexual altamente violenta decide politizá-la no primeiro parágrafo do capítulo? Que raio é que isto sequer quer dizer? 


Esta é a cicatriz do livro: há um conjunto de lugares-comuns, referências despropositadas e autênticas bizarrias que contaminam toda a narrativa. É a falta de significado que tudo tem.


As referências são acessórios para o leitor sentir que lê algo com que se identifica. As menções políticas servem para a autora dar signaling das suas opiniões, mas sempre de forma infundada, ou pouquíssimo aprofundada, levando-nos a achar que não passa tudo de mais um pedaço de plástico. 

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