2022. Vivemos tempos estranhos. As palavras de ordem são “produzir”, “vender”, “consumir”. É-nos imposta uma produtividade tóxica todos os dias. E a cultura? A cultura é que paga.
de Ana Roque Antunes
Esta obsessão com o ganho e com a eficácia toma conta das nossas vidas ao ponto de nos sentirmos sempre em falta: porque não vimos, não lemos, não estivemos. A nossa to-do list estava cheia e, mesmo depois de a concluirmos, acabamos vazios. A forma como encaramos a cultura é cada vez mais condicionada por este clima de obrigatoriedade.
Damos uma vista de olhos nos filmes nomeados para os Óscares, mas não chegamos ao fim de nenhum deles. Lemos meia página por dia “daquele livro ótimo”, mas só mesmo para adormecer. Temos uma playlist com os latest hits que usamos como banda sonora no trânsito, mas nunca ouvimos um álbum de uma ponta à outra só mesmo por prazer. A velocidade de reprodução a que ouvimos podcasts saltou para o dobro e já não sabemos como voltar atrás.
Gostamos de picar o ponto. Estamos suficientemente a par para a conversa de café, mas não sabemos ir mais além em tema nenhum. Mas importa-nos mais parecer, não é? Não abdicamos de uns quantos stories diários para provar aos outros que fomos, que vimos e que existimos. Que ainda contamos. Mas não temos nada para contar. Porque nos preocupamos mais com a forma e menos com o conteúdo. Para nós, basta a sinopse. E chega ler as gordas.
A facilidade com que acedemos à informação leva-nos a medir a vida pela bitola do imediato. Abrimos a notícia, mas paramos de ler no primeiro parágrafo. Até podíamos ir presencialmente, mas preferimos reunir online. Queremos votar informados, mas basta-nos um quiz para decidir. Queremos fazer tudo hoje, agora, já. E, se não for possível, é porque não deve valer a pena.
Há que cortar com estes loops nos quais, inconscientemente, entramos. Porque certas coisas exigem que mergulhemos a fundo, que procuremos melhor e que demos mais. Porque a arte, em especial, não é um bem de consumo rápido. Pede-nos tempo.
Da próxima vez, vamos ver aquele episódio até ao fim. Vamos guardar uma hora do nosso tempo para ler sem ser na sala de espera. E, se ouvirmos uma boa música, não vamos deixar passar a oportunidade de ouvir o resto do álbum, tal como foi pensado pelo artista.
Para o efeito, deixo uma sugestão para um treino de mergulho, obra dentro. Procurem pelo álbum “An Ancient Observer”, do músico Tigran Hamasyan. É um trabalho de grande profundidade, que pede silêncio e espaço para habitar. Num resumo perfeito da identidade de Tigran, o resultado musical é um constante equilíbrio entre despojamento e extravagância, rigor e liberdade, tradicional e contemporâneo. Será um álbum pouco interessante se for ouvido de forma superficial, talvez por ser demasiado arrojado para alguns. Contudo, parece-me a oportunidade ideal para iniciar esta viagem de contemplação.
Que seja simplesmente ouvido como quem quer oferecer o seu tempo à música, e não como ruído de fundo durante o banho. Experimentem. E digam-me como correu!
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