Indica, de igual modo, que o aumento de rendimentos, desde que começou a pandemia, das 10 pessoas mais afortunadas é mais do que suficiente para evitar que a restante população fique mais pobre e para financiar a vacinação mundial de todos.
Texto de Sofia Escária
A constatação de que os efeitos da pandemia se têm repercutido de forma significativamente distinta e assimétrica na nossa sociedade, e entre os diversos pontos do globo, não é novidade. Também não é surpreendente - a variação nula ou positiva de rendimentos daqueles que se podem dar ao luxo de confinar em segundas casas, casas de férias, hotéis ou locais paradisíacos contrasta com os que mais se ressentiram, com os que perderam capacidade económica e vivem em condições mais precárias, sem ter outras alternativas de financiamento ou alojamento. Inclusive com os que não possuem casa de todo e limitam-se a tentar sobreviver.
A consciencialização generalizada acerca desta realidade não se traduz necessariamente numa ação nem num motor de intervenção. Multiplicam-se os estudos e alertas para a prevalência deste fenómeno sem que, para variar, lhes seja conferida a devida relevância, e sejam implementadas políticas que combatam as desigualdades,previamente perpetuadas pelo sistema, agora agravadas pela COVID-19.
O estudo de janeiro de 2021 da Oxfam elucida-nos acerca de alguns dados particularmente inquietantes. Por um lado, verifica-se que os 1000 multimilionários mais ricos do mundo demoraram apenas cerca de oito meses a recuperar a redução da sua fortuna (até novembro de 2020), enquanto que os mais pobres podem levar mais de uma década a regressar à condição em que estavam antes da pandemia. Indica, de igual modo, que o aumento de rendimentos, desde que começou a pandemia, das 10 pessoas mais afortunadas é mais do que suficiente para evitar que a restante população fique mais pobre e para financiar a vacinação mundial de todos.
Ilustra, similarmente, que, em setembro de 2020, Jeff Bezos podia ter pago um bónus (acrescido à remuneração) de 105 000 dólares a cada um dos 876 000 funcionários da Amazon e, mesmo assim, teria mantido o rendimento prévio à pandemia. Contrariamente, a maioria da população do nosso planeta vive com um rendimento entre 2 e 10 dólares por dia.
Ademais, revela que entre 2007 e 2017, a receita fiscal de cerca de 100 países variou negativamente em função dos impostos sobre os rendimentos de pessoas coletivas – representavam somente 13% da receita total de 2017, enquanto que os impostos sobre bens e serviços corresponderam a 44% e os sobre as pessoas singulares a 21%. Dá que pensar, certo? Este fenómeno conhece maiores repercussões com o crescimento do comércio eletrónico no retalho global de 3% em 2020, cuja tributação é de especial complexidade e tem sido alvo de múltiplas discussões no seio da União Europeia e do G20, face à evasão e elisão fiscal internacional. (Nota: em Portugal, por exemplo, o recurso ao comércio eletrónico aumentou 8% entre este segundo período de confinamento e 2019).
A Oxfam ressalva ainda que a desigualdade não é inevitável, podendo mesmo passar por uma opção política. Se os Estados decidirem intervir para reduzir as disparidades a uma taxa de 2% ao ano, os valores registados antes da pandemia podem ser atingidos em cerca de três anos – são 860 milhões de pessoas salvas de uma situação de pobreza até 2030.
A nível da educação, uma das áreas mais nevrálgicas para combater a discriminação e diferenciação entre regiões, sabemos que mais de 180 países encerraram temporariamente as suas escolas, afetando 1.7 mil milhões de jovens e crianças no mundo. Observa-se a distinção, uma vez mais, entre os países mais desenvolvidos, nos quais a suspensão decorreu durante cerca de seis semanas, e os mais carenciados, marcados pela escassez de alternativas digitais ou metodologias à distância e uma interrupção superior a quatro meses.
Em Portugal, sabemos que o mais recente confinamento culminou num aumento de mais 3916 beneficiários do Rendimento Social de Inserção, que abrange as situações de pobreza extrema.
Conhecemos, de igual modo, que a pandemia agravou o défice orçamental de 2020 em 9704 milhões de euros face a 2019, em virtude da redução da receita fiscal (5,6%) e do aumento da despesa (5,3%), em particular da referente aos apoios concedidos às famílias e às empresas. Contudo, como referido no comunicado do Governo, o emprego evidenciou um comportamento mais favorável do que o esperado, contribuindo para um défice inferior à expectativa (5,7% em vez dos 7,3% previstos).
O Governo identifica ainda algumas das medidas que justificam, pelo menos, 4532 milhões de euros do défice, das quais se destacam o “impacto da suspensão dos pagamentos de conta (-695 milhões), a perda de receita contributiva pela isenção de pagamento de TSU no âmbito do regime de lay-off simplificado, apoio à retoma progressiva e incentivo financeiro à normalização da atividade empresarial (-509 milhões)”, a par das medidas “de lay-off (881 milhões), outros apoios suportados pela Segurança Social (740 milhões) e aquisição de equipamentos na área da saúde (641 milhões)”. A perspetiva para 2021 também não é a melhor.
Não obstante, o Presidente da República promulgou três leis aprovadas no parlamento, que aumentam os apoios sociais no âmbito da pandemia e cujo veto tinha sido solicitado por parte do Governo. Em causa estava a norma-travão da Constituição que restringe o aumento da despesa pública. Com efeito, ao longo do último ano, múltiplas foram as reivindicações acerca da suborçamentação dos planos e dos auxílios concedidos, da inobservância da chegada e implementação da bazuca, bem como do parco investimento estatal para a recuperação económica e a proteção das empresas e dos agregados familiares.
Entre todos, instituições governamentais, organizações, parceiros sociais e demais agentes do sistema nacional e internacional, foi consensual que a despesa era fundamental - um abrandamento nas medidas ou a introdução de políticas orçamentais contracionistas lesa as economias, em vez de as proteger ou de contribuir para a sua aceleração.
A questão que se coloca, neste momento desafiante de gestão de prioridades e de recursos substancialmente escassos, prende-se com a necessidade conjunta de assumirmos a responsabilidade perante os demais. Não nos podemos limitar a tentar regressar à situação anterior, como elencado, mas devemos fazer incidir a ação governativa sobre as disparidades observadas. A solução passa pelo contributo de todos para estabelecer uma sociedade global mais justa, igualitária e, por conseguinte, mais próspera e civilizada, da qual todos possam beneficiar.
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