Penso que será legítimo assumir que a maior parte dos leitores estarão familiarizados com Descartes, nem que seja apenas com o seu célebre “penso, logo existo”. Mas terão noção das consequências desta premissa nos dias de hoje?
de Constança Cardoso
(Um homem Inuit e um urso polar cumprimentam-se cordialmente.
Desenho de Davidialuk Alasuaq)
Comecemos pela base. A dualidade cartesiana que sustenta a sua tese, corpo vs. mente, implica uma separação entre o sujeito, humano e consciente, representado pela mente e o objecto, inanimado e cognoscível, representado pelo corpo. É desta distinção que surge o paradigma objectivista. Como explica o filósofo David Abram: “Nas mãos de Descartes (...) este continuum hierárquico de formas vivas, comummente chamado “a Grande Cadeia do Ser”, foi polarizado numa completa dicotomia entre matéria mecânica, não-pensante (incluindo todos os minerais, plantas e animais, bem como o corpo humano) e a mente pura e pensante (domínio exclusivo dos Homens e de Deus). Dado que apenas os humanos são uma mistura de matéria extensa e mente pensante, só nós é que somos capazes de experienciar as sensações mecânicas do nosso corpo. Entretanto, todos os outros organismos, consistindo apenas em matéria extensa, não são, na verdade, mais do que autómatos, incapazes de uma experiência efectiva, incapazes de sentir prazer ou sofrer dor. Por este motivo, nós, os humanos, não precisamos de ter escrúpulos ao manipular, explorar ou experienciar, usando outros animais de qualquer maneira que achemos adequada”.
Esta disjunção sujeito-objecto foi o sustento de todo o projecto modernista: ciência ocidental, economia capitalista, desenvolvimento tecnológico – tudo isto, directa ou indirectamente, parte da filosofia de Decartes; ou melhor, deste entender do que nos é exterior como objecto material, intrinsecamente sem valor, mas essencialmente cognoscível.
A indústria da carne, por exemplo, que assume proporções absolutamente brutais, sendo uma das principais causas de desflorestação da floresta amazónica, só é aceitável dentro de um paradigma que compreenda a fauna e a flora como objectos inanimados. No entanto, o reinado objectivista não durou para sempre. Pelo menos nas ciências sociais, há muito que não se olha para o mundo desta maneira.
Ao reposicionar a “localização da verdade”, desta vez no sujeito em vez de no objecto, nasceu o subjectivismo. A partir deste momento, a realidade passa a ser pensada como algo sem existência absoluta ou universal e como um produto pessoal e imaterial. Ou seja, a realidade corresponde à construção do mundo por parte da mente do individuo e, sendo assim, existem múltiplas realidades, tantas quantos sujeitos há.
Em antropologia, concretamente, esta visão originou o relativismo cultural, proposto por importantes figuras como Franz Boas. Segundo esta perspectiva, uma cultura pode apenas ser entendida dentro dos seus próprios termos, pois cada uma é única e incomensurável em relação a outras. Com esta perspectiva relativista, a antropologia iniciou um importante e contínuo movimento no questionamento do etnocentrismo.
No entanto, autores como Viveiros de Castro defendem que mesmo esta visão multiculturalista acaba por ser etnocêntrica, uma vez que ainda é marcada pela dicotomia natureza-cultura, que segue a mesma lógica da dicotomia mente-corpo. Ou seja, enquanto que na sociedade ocidental se considera que todos os povos possuem uma mesma natureza (a espécie humana) e que se diferenciam nas suas culturas, grande parte das sociedades ameríndias e do norte euroasiático possuem uma concepção contrária – o mundo é composto por seres que partilham uma mesma cultura, um mesmo espírito, mas que se diferenciam na sua natureza, ou seja, no corpo que vestem.
Esta é uma das ideias fundamentais das ontologias ameríndias e norte euroasiáticas: seres não humanos são também eles vistos como pessoas, como seres em si mesmos e, por isso, como possuidores duma perspectiva própria. Assim sendo, a fronteira que nos separa de seres não humanos dissolve-se, tornando possível a comunicação entre ambos.
Esta questão revela-nos muito mais do que a simples ideia de que povos diferentes têm pontos de vista diferentes em relação à “natureza”. Revela-nos que a própria natureza não humana tem um ponto de vista sobre os humanos. Uma parte importante do quotidiano dos Runa da alta Amazónia, por exemplo, é dedicada a interpretar os sonhos dos seus cães, através das expressões corporais que fazem durante o sono, pois estes revelam avisos importantes sobre o futuro. Bem mais a norte, os caçadores Inuit evitam dizer em voz alta o nome dos animais que caçaram, pois sabem que o espírito destes pode ofender-se e procurar retaliação. Para além disso, tradicionalmente o acto de matar um animal só é permitido após o caçador mostrar as suas intenções obter o consentimento da sua presa. Toda a caça baseia-se, então, numa relação de diálogo, respeito e igualdade. Os xamãs, figuras fundamentais nas culturas animistas, têm a particularidade de poderem mover-se com relativa facilidade entre o mundo humano e o mundo animal. Fazem-no por várias razões, mas sempre numa lógica de diálogo com outras pessoas não humanas.
Como explica o antropólogo Tim Ingold “one of the principal reasons why the shamans of animic society make their often arduous journeys to the communities of non-human animals is to recover vitality that may have been lost, due to some untoward circumstance, to the ‘other side’. Such loss is generally experienced in the form of serious illness, and by bringing vitality back to the sufferer the shaman aims to effect a cure. Another reason may be to negotiate with the spirit masters, who control the disposition of animals, for their release to human hunters. To make the crossing to the animal domain, the shaman has to avail himself of the assis- tance of bodies other than his own. Animals of various kinds, known as his ‘helpers’, carry his inner being aloft on its journey, yet all the while his corporeal body remains where it stands. The shaman’s liberation from the constraints of his bodily bearing in the human world is generally achieved through going into trance. In this state, the normal boundaries between human and animal are dissolved”.
Podemos pensar que estas são ontologias exóticas, distantes, completamente impensáveis no ocidente, mas será que não somos nós que nos isolamos do mundo sensível? Não nos terá também ensurdecido o “progresso” e a modernidade capitalista? A verdade é que, não é só numa floresta tropical distante que se pensa o mundo desta forma. Sempre houve na europa mais rural (mas não necessariamente) gente que pensa a sua posição na natureza como parte integrante da mesma e não como algo externo. Esta comunicação entre seres humanos e não humanos não é exclusiva de povos indígenas “exóticos”.
Como diz David Abram, “a nossa falta de atenção à natureza não humana é hoje sustentada por maneiras de falar que simplesmente negam inteligência ás outras espécies e à natureza em geral, bem como pelas próprias estruturas da nossa existência civilizada – pelo incessante zumbido de motores que se sobrepõem as vozes das aves e dos ventos; por luzes eléctricas que eclipsam não só as estrelas mas a própria noite; por condicionadores de ar que ocultam as estações (…) Encontramos conscientemente a natureza não humana apenas como foi circunscrita pela nossa civilização e suas tecnologias (…) Ainda assim, a normal transformação da ‘natureza’ em mercadoria pela civilização pouco ou nada nos diz da alteração perceptual que tornou possível esta redução do animal e da terra a um objecto, pouco nos diz do processo pelo qual os nossos sentidos primeiramente puseram de parte o poder do Outro, a visão que por tanto tempo tinha motivado os nossos rituais mais sagrados, as nossas danças e as nossas preces”.
Em pleno Antropoceno e em plena crise climática não podemos mais fechar-nos nesta sala de espelhos onde apenas se ouvem os nossos próprios ecos. Não podemos continuar a teorizar como se vivêssemos sozinhos num mundo cheio de coisas exteriores a nós. Há que ser sensível a tudo o que é sensível e que nos rodeia, há que olhar nos olhos de uma “cabeça de gado” para neles ver os nossos espelhados. Há que ir mais além do humano para realmente o conhecer. O que proponho não é que nos apropriemos de outras culturas, que bebamos ayahuasca ou adoptemos outras prácticas ameríndias de forma descontextualizada. Proponho sim, reinventar novas formas de olhar e sentir o mundo que habitamos e aprender sobre a humanidade através do ponto de vista daquilo que não é humano.
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