A Europa falhou novamente no palco internacional. Resta saber quantas vezes o poderá fazer novamente, até a ideia de algum dia deixar de ser subalternizada pelos Estados Unidos se esgotar.
Crónica de João Maria Jonet
Temos visto muitas declarações sobre o grande triunfo do povo afegão sobre o império americano. A esquerda e a direita populistas regozijam-se com a derrota de uma missão que falhou efetivamente na definição de objetivos claros e que nunca conseguiu justificar a sua utilidade para os interesses dos eleitorados dos países que a compunham, principalmente nos Estados Unidos.
Lembrando-nos das discussões sobre este tema em várias eleições presidenciais, ou vendo Joe Biden nas televisões a justificar uma decisão disparatada atrás da outra sobre o Afeganistão, é fácil associar a debacle de Cabul apenas com os Estados Unidos, mas é importante lembrar que isto não é o Iraque. Não é uma guerra mal fundamentada lutada quase exclusivamente por americanos, resultado da normal arrogância da única superpotência num Mundo unipolar. Não, o Afeganistão contou com a presença de centenas de milhares de europeus - nos quais se contam centenas de portugueses - que durante estes 20 anos tentaram garantir que daquele País não voltava a sair um grupo terrorista com a pujança da Al-Qaeda, responsável por alguns dos ataques terroristas mais violentos da história recente da Europa. Claro que esse objetivo inicial depois se confundiu com a tentativa de constituir no Afeganistão um Estado unido e moderno. Uma conjugação quase impossível, visto que para construir um Estado moderno com a divisão étnica e tribal do País seria mais fácil dividir o território em dois países minimamente coerentes.
Falhando miseravelmente este objetivo, acabou uma missão que não só era um garante de segurança europeia, como uma maneira de melhorar as condições de vida de milhões de afegãos, que assistiram a desenvolvimentos assinaláveis ao nível de Direitos Humanos, da literacia (que aumentou de 8% para 43%) à igualdade de género (a percentagem de mulheres na escola e na universidade passou de quase inexistente para mais de um terço da população estudante), passando pelo aumento da população escolar de 1,2 para 8,2 milhões de estudantes, pelo aumento do acesso à água potável (dos 16% para 89%) e até do aumento da esperança média de vida em 8 anos. São valores e direitos que os países da União Europeia dizem defender, e, portanto, faz algum sentido lutar pela sua garantia em locais onde isso se junta aos seus interesses de segurança. Infelizmente, na Europa não assistimos sequer a um debate custo-benefício sobre as vantagens de manter uma força residual para estabilizar o País. Não assistimos a nenhum debate sobre a importância de a Europa agir quando os Estados Unidos se retraem e se focam no Pacífico. Nem a uma conversa de fundo sobre a maneira como a estabilidade do Médio Oriente e Ásia Central são muito mais importantes para a metade europeia do que para a metade americana da NATO.
Em vez disso, vimos um seguidismo amorfo de todos os europeus, que preferiram alinhar na debandada e culpar os americanos. Os turcos ainda simularam a simpatia de ficar a ajudar logisticamente o aeroporto de Cabul, mas nem isso se efetivou. A Europa saiu com o rabo entre as pernas e não afirmou nenhum dos seus interesses estratégicos, particularmente o interesse de evitar uma crise brutal de refugiados. De novo, as instituições europeias falham e assumir um papel próprio a nível internacional, assumindo o eterno rótulo de potência adiada.
Agora, fazemos o mínimo de receber aqueles que durante duas décadas ajudaram as nossas Forças Armadas, sem evitar que a extrema-direita lance sobre eles as mais horríveis suspeitas. Dificilmente conhecemos melhor o percurso e a fiabilidade de algum imigrante como conhecemos o destes refugiados, que trabalharam de perto com os nossos serviços de segurança, mas, para o populismo barato, nada do que é lógico interessa. Pedia-se um pouco mais de respeito próprio à Europa e a Portugal. Os que lá morreram a defender Portugal não mereciam que a missão fosse descartada desta maneira e que quem os ajudou fosse assim esquecido, ou obrigado a escolher quem trazer, como lamentavelmente defendeu o Ministro da Defesa. Muito menos seria admissível que encolhêssemos os ombros perante uma decisão unilateral de Washington que deixou nas mãos de fundamentalistas sanguinários milhões de civis indefesos, especialmente mulheres, fingindo acreditar nas vagas promessas de civismo dos talibã.
A Europa falhou novamente no palco internacional. Resta saber quantas vezes o poderá fazer novamente, até a ideia de algum dia deixar de ser subalternizada pelos Estados Unidos se esgotar.
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