Poucos notavam ao subir aquela rua que se encolhia ao passar o elétrico, mas, sob um pequeno letreiro, escondida atrás duma pequena vitrine, havia uma pequena gelataria. Para infortúnio da sua senhora, esta parecia ter sido alvo de bruxaria: aparecia apenas a uns tantos. Os poucos que a viam eram normalmente gente lá do bairro a quem um novo espaço nas suas ruas nunca passaria despercebido.
de Constança Cardoso
Mas, de vez em quando, havia gente de passagem que acabava por lá ir parar. Muitos, turistas naufragados a quem o GPS falhou e que, por isso, estavam particularmente atentos ao seu redor.
Há quem diga que há lugares que só aparecem a quem deles verdadeiramente necessita, mas não me parece ser o caso. Eu cá acho que a gelataria, qual criatura orgulhosa, só se deixava mostrar a quem sabia que iria ler o cardápio com fascínio de criança. A personalidade não é só coisa de gente, cada lugar tem a sua, e este não só se ofendia facilmente como era particularmente mesquinho.
Sentou-se uma vez ao balcão uma senhora vinda do outro lado do oceano. Enquanto a filha acabava de comer um gelado da cor das suas bochechas, pediu um café aguado e dois pacotes de açúcar, porque, dizia, “o expresso de cá é demasiado amargo”. Posso garantir que até a gravidade tinha alibi no momento em que a chávena voou bancada fora, derramando o café bem quente sobre a senhora.
É curioso, tendo tanta personalidade, pensar-se-ia que esta gelataria seria já uma senhora de sua idade, vivida e desbocada como são tantas vezes as comadres lá do seu bairro. No entanto, não passava de uma criança. Pensando bem, as crianças e os velhos até costumam ter em comum isso de expressar sem medo o que lhes vai na alma.
Uma das clientes habituais era uma senhora (a julgar pelo que sempre vestia) viúva e dos seus 70 anos. Vivia lá perto e, para chegar a casa depois de vir do mercado, tinha sempre que subir a rua da gelataria. Essa maldita rua que era tão longa e tão íngreme que obrigava a senhora a descansar sempre a meio caminho. Essa bendita rua que conduzia os sem-fôlego ao seu alívio. Esta senhora, de expressão sofrida, mas sempre doce, tinha por hábito pedir sempre sabores excêntricos e sempre diferentes dos da última visita.
Uma vez, confessou que tinha pena de não ter podido estudar. Gostava muito dos bichos, dizia, e, se pudesse, teria sido investigadora, como aqueles que aparecem no programa da vida selvagem aos domingos, mas que os seus deveres maternos chamaram-na cedo demais e toda a vida não se deixou ser mais que mãe e esposa. A mim, parece-me que compensa aquilo que não viveu através dos sabores exóticos que pede sempre.
À hora de almoço, era comum passar pela loja um homem que vinha sempre acompanhado de um tupperware cheio de tâmaras para oferecer. Por esta altura, a moça que lá trabalhava costumava fazer uma pausa, sentando-se no degrau do lado da entrada para fumar. Durante essa pausa que durava exactamente um cigarro, era sabido que lhe seria oferecida uma tâmara por este homem de olhar tão gentil como alucinado. Depois dele, costumava passar um senhor, que trazia consigo uma matilha inteira de cachorrinhos, uns atrelados, outros num carrinho de bebé que empurrava despreocupado pela rua acima. Já quase no fim do cigarro, passava o elétrico a transbordar de turistas, que fotografavam fascinados a moça de avental fumando à porta da gelataria. Quase parecia que vinham em safari.
Mais ao fim do dia, vinha sempre um senhor que parecia ter a alma atrelada ao cão. O primeiro não era a pessoa mais desenrascada e a ideia de interações sociais não previamente ensaiadas na sua cabeça deixavam-no numa ansiedade comichosa. Evitava a todo o custo sair fora da sua rotina e nem a passear o seu cão se aventurava por outros caminhos senão os que fazia todos os dias. Acontece que o seu companheiro era o total oposto. Apesar de já ter alguma idade, passava o caminho todo a enfiar o nariz dentro das lojas, a saltar para cima das pessoas e a puxar para onde lhe cheirava melhor. Todos os dias o cão entrava dentro da gelataria e todos os dias o dono, muito atrapalhado, tentava chamá-lo antes que a moça reparasse na sua presença. Nunca resultava, pois ela estava sempre à espera desta visita e não perdia uma oportunidade de o encher de festas. Chamava o seu dono a provar um gelado, mas este fugia sempre do convite, corado e nervoso. Cá para mim, o cão, que era esperto, percebia que o dono precisava de um empurrãozinho na vida e forçava estes encontros de propósito. Diz-se tanto que os cães ouvem coisas que nós não ouvimos, vai-se a ver e também sentem quando os donos precisam de ajuda ainda que estes não saibam.
Mesmo antes de fechar a loja, costumava aparecer um rapaz que trabalhava na obra do outro lado da rua. Antes de pedir os mesmos sabores de sempre, fazia também o mesmo comentário de sempre, torcendo o nariz enquanto lia o menu: “o gelado é bom, mas é muito caro”. Não havia como negar. Os preços não foram pensados para a gente da zona, mas sim para os turistas do safari urbano.
Com o fim do verão chegou também o fim da gelataria, ainda menina e moça. Teve uma morte prematura e poucos que a chorassem. À medida que as casas lá do bairro se foram tornando alojamentos locais, a rua da gelataria deixou de conduzir a gente aos seus lares e passou a ser lugar de passagem. É como se fosse agora uma grande escada rolante. Serve apenas para subir ou para descer, nunca para ficar.
A moça que costumava estar atrás do balcão e que, entretanto, tinha ido estudar pra fora, voltaria a subir aquela rua que se encolhe ao passar o elétrico na esperança de provar mais uma vez um daqueles gelados que costumava servir. Caramelo salgado e cheesecake eram os seus preferidos. Morango, embora tenha fama de servir aqueles com pouca imaginação, era também um dos melhores. Sabia a morango de verdade, acabadinho de colher.
Ia, então, a moça a caminho, com a sede que seis meses fora lhe tinham deixado, bem como a íngreme calçada que subia, quando deu por si já bem à frente do local onde costumava trabalhar. Passou por lá e nem se deu conta. A gelataria já não o é, percebeu finalmente. Em seu lugar, está agora um atelier de design com um nome estrangeiro.
Sentou-se do outro lado da rua, olhando de frente para a loja e pensou que nunca a tinha olhado daquela perspectiva. Era mesmo pequenina... Como teriam lá cabido tantas memórias? Lembrou-se da senhora dos sabores excêntricos, do cão que passeava o dono, do alucinado das tâmaras… olha, lá vai ele! Desta vez, não tem a quem as oferecer, não reconhece a moça sentada do lado oposto da rua e desce sem parar a calçada até à praça. Algum tempo depois, passou também o homem dos mil cães, agora já bastante maiores, mas nem por isso deixando de entrelaçar as trelas, emaranhar o dono, e levá-lo quase a cair a cada dez metros.
Olhando à sua volta, a moça repara que não foi apenas a gelataria a desaparecer. A drogaria que havia mais em baixo é agora uma loja de souvenirs, a tasca do lado onde costumava almoçar agora serve apenas brunch e a obra da frente está acabada e deu lugar a um hostel.
Percebe, então, que já não tem nada a fazer nesta rua e desce em direção ao metro. Esta era a rua dos invisíveis, mais invisíveis ainda sem um lugar onde nela ficar. Continuam a lá passar, a caminho de casa ou dos seus assuntos, mas já não param a meio. Desencontram-se agora que não têm espaços em comum e seguem para os arredores da rua, ou do bairro, ou até mesmo da cidade, longe do safari e onde ninguém os vê, mas de onde eles nos veem a todos.
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