Podemos ser como queremos, desde que nos encaixemos nas categorias comercializáveis do ser. Acabamos por não ser, verdadeiramente, diferentes uns dos outros. As diferenças que expressamos e mostramos são comparáveis com as diferenças que os outros nos mostram a nós, porque se exprimem através de bens de consumo e nada têm que ver com o nosso interior.
Ilustração de Francisca Faria
Estudante de Pintura na FBAUL
Crónica de Cecília Faria
Estudante de Sociologia na FCSH
A Leonor contou-me que, naquela sala de conferências, pela primeira vez na sua vida, se sentiu perdida, sem pertencer a lugar nenhum. «Os meus pais vieram da Guiné, vivem cá, mas ainda vão à mesquita, identificam-se com a cultura de lá, mesmo que mantenham alguma distância. E eu, Cecília?». Fiquei sem saber o que lhe responder. «Quando estive naquela conferência… Eles falavam do “nosso passado”, do passado português, mas esse passado não é o meu.». Olhou para mim. «Também não sei nada sobre a Guiné, nunca lá estive, e é para mim uma realidade tão distante...».
Queria olhar para a Leonor, dizer-lhe que tudo isso são convenções sem importância, que ela tem de as combater. Tentar não se encaixar em nenhuma categoria, não ser nem guineense nem portuguesa. Não deixar que recaiam sobre ela expectativas, não permitir que os olhares alheios constranjam o seu comportamento. Olhei para ela e não tive coragem de lhe dizer nada disto.
Não consigo imaginar como é sentir-me assim. Nasci em Portugal e digo-me portuguesa, entregaram-me um passado que aceito como meu. As minhas dúvidas são as dúvidas de qualquer adolescente, ainda não sei o que quero da vida. Entretanto, a vida já espera algumas coisas de mim. E dos outros. Espera, por exemplo, que a Leonor defina de onde vem.
Entro na aula angustiada, mas a horas, porque aquele professor não tolera atrasos. Todos corremos para a sala cinco minutos antes das oito, para escaparmos ao embaraço de, ao entrar na sala sorrateiramente, sermos notados e levarmos uma reprimenda, com mais de trinta pares de olhos postos em nós. Com o seu ar composto e austero, o professor começa a aula. Retenho frases bonitas que diz e que quero guardar. «Cada indivíduo é a forma mais complexa da vida social.». Cada indivíduo é único, viveu coisas que só ele sabe, experimentou sensações que mais ninguém pode compreender. Os indivíduos não são, por isso, comparáveis entre si.
Abro a porta do quarto, sento-me à secretária e ligo o computador. Salta do ecrã um anúncio da Levi’s. Termina com a frase «Faz à tua maneira». É um anúncio da Levi’s, mas podia ser o anúncio de outra marca qualquer. Todas utilizam as mesmas frases, apelam à diversidade, dizendo-nos coisas inspiradoras como «Sê tu próprio» ou «Vive a tua autenticidade» ou «Faz as coisas à tua maneira». Anúncios com imagens de jovens confiantes, que parecem levar uma vida emocionante e viver momentos de felicidade plena. Vou ao Youtube, sou imediatamente bombardeada com mais anúncios, surge um da BMW. A voz rouca do narrador diz: «Na vida pode fazer o que todos fazem, ou fazer à sua maneira.». A Leonor não conduz o novo BMW Série 2 Grand Coupé. Contudo, apesar de ter umas calças Levi’s, a verdade é que ainda não conseguiu perceber o que é fazer as coisas «à sua maneira», ainda não conseguiu definir-se e ser ela própria.
Se eu dissesse à Leonor «sê tu própria, sê autêntica», ajudá-la-ia na sua confusão? A ideia de autenticidade aparece-nos em todas as ruas, nos anúncios e nos cartazes publicitários, em todos os ecrãs, nos nossos computadores e telemóveis. Onde está escondida a minha autenticidade, e onde é que a Leonor guarda a dela? Lembro-me do livro A Expulsão do Outro de Byung-Chul Han. Abro-o no capítulo «O Terror da Autenticidade». Oito páginas de frases curtas, sucintas, simples. Byung-Chul Han distingue dois conceitos, o de alteridade e o de autenticidade. O primeiro desapareceu na sociedade capitalista, ou melhor, deformou-se e gerou o segundo. Olhamos para os outros apenas procurando neles algum termo de comparação, características com que nos possamos identificar ou das quais nos distingamos, vendo-os sempre em função de nós próprios e do que queremos ser. «O esforço de cada um visando ser autêntico e não se assemelhar seja a quem for salvo a si mesmo desencadeia uma comparação permanente com os restantes. A lógica da comparação em termos de identidade leva a que a alteridade se mude em identidade.» O outro só existe na medida em que nos permite construir o nosso «eu autêntico».
Deste modo, a autenticidade, que nos impõe uma falsa ideia de emancipação em relação a pressões e imposições exteriores, nada tem que ver com uma vivência saudável do diferente ou com uma expressão genuína da nossa essência. «O imperativo da autenticidade força o eu a produzir-se a si mesmo. Em última análise, a autenticidade é a forma neoliberal de produção do eu. O eu como empresário de si mesmo produz-se, representa-se e oferece-se como mercadoria.».
Podemos ser como queremos, desde que nos encaixemos nas categorias comercializáveis do ser. Acabamos por não ser, verdadeiramente, diferentes uns dos outros. As diferenças que expressamos e mostramos são comparáveis com as diferenças que os outros nos mostram a nós, porque se exprimem através de bens de consumo e nada têm que ver com o nosso interior. O nosso interior, como disse o meu professor, é sempre incomparável. «Enquanto estratégia neoliberal de produção, a autenticidade gera diferenças comercializáveis. Multiplica desse modo a pluralidade das mercadorias através das quais a autenticidade se materializa. Os indivíduos exprimem a sua autenticidade sobretudo através do consumo.» O nosso «eu autêntico» constrói-se através da roupa que compramos, dos telemóveis que usamos, dos carros que conduzimos, no fundo, dos objectos materiais que consumimos e das fotos que publicamos nas redes sociais. A autenticidade que nos pedem é, portanto, a autenticidade das selfies e das redes sociais. Não há nada mais falso do que isso.
A complexidade do outro de que o meu professor falou, desapareceu na nossa sociedade, precisamente porque essa complexidade não é materializável. Agora, comparamo-nos todos uns aos outros, consumimos os produtos que correspondem à categoria em que nos queremos encaixar. Estabelecemos uma relação sobretudo material com o nosso eu e aquilo que transmitimos é, por isso, supérfluo e incompleto, porque não conseguimos transmitir os nossos conflitos interiores desse modo. Ficamos sozinhos. É certo que sofrer e sentir são sempre actos solitários, na medida em que cada sentimento que experimentamos é único e intransmissível. Eu nunca vou sentir o que a Leonor sente agora, não poderei sequer entender uma pequena parte desse sentimento. Nunca vou conseguir compreender totalmente a Leonor e a sua angústia, saber o que ela quer dizer com «não pertencer a lugar nenhum». Porém, é precisamente o facto de a Leonor saber que eu tenho noção da sua unicidade que faz com que ela não se sinta sozinha.
A nossa vida social constrói-se no quotidiano, a maneira como vemos o mundo resulta das experiências que vivemos, dos olhares que trocamos, das palavras que nos dirigem. Não pode ser de outra forma. Se pensar bem, ao longo do meu dia, em quase todos os momentos, os outros pedem que me defina, que diga quem e como sou. Querem que marque uma posição.
Talvez seja este o «problema». A Leonor quer saber quem é, quer descobrir de onde vem. Quer marcar uma posição. A Leonor quer ter alguma coisa com que se identificar, descobrir alguma realidade a que se agarrar. Eu também quero. Não vale a pena estar com moralismos sociológicos.
Abracei a Leonor, despedi-me dela. Não me ocorreu nada que lhe pudesse dizer, não tinha nenhuma solução imediata para lhe oferecer. Também sei que não é isso que ela procura. Ao contar-me estas coisas, a Leonor não quer que eu lhe explique quem ela é, nem que lhe diga como se vai descobrir. A Leonor só quer que eu a compreenda. E eu acho que a compreendo. Mais logo envio-lhe esta crónica.
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