Num café castiço no coração da Mouraria, em Lisboa, três velhos discutem a história do seu bairro e o estado presente das coisas.
de António Vaz Pato
Falam da perda do sentido de comunidade, comentam o desaparecimento gradual do nicho cultural e popular, não esquecendo também fenómenos mais recentes, da imigração à inclusão de novos habitantes. Falam, sobretudo, de um tempo que, para eles, já não parece corresponder à realidade actual. O tom da conversa é saudosista e, por essa razão, podemos cair na tentação de julgar estes velhos por não terem acompanhado o espírito dos tempos. Mas quem viveu o seu contexto poderá, por seu turno, reconhecer que a sua conversa faz sentido em muitos aspetos.
O que aconteceu àquilo que as pessoas identificavam como “a comunidade do bairro”? Perdeu-se? O que é feito das colectividades, dos núcleos, dos cafés, isto é, os pólos agregadores que eram a base cultural comum de um povo que partilhava o mesmo espaço habitacional?
Estas reflexões partem do documentário “Do Bairro”, realizado por Diogo Varela Silva, um filme que se foca principalmente no papel activo das colectividades e associações recreativas, consideradas, até há poucas décadas, os grandes centros da vida bairrista. Era nestes lugares que as pessoas se reuniam para ouvir um concerto, fazer desporto, organizar sessões de teatro ou cinema ou simplesmente para pôr a conversa em dia com amigos e conhecidos.
Estes núcleos ainda persistem hoje em dia, embora ameaçados por um tempo que parece votá-los ao esquecimento. Olhando com atenção, muitos não imaginariam o serviço fundamental que as colectividades representaram – e ainda representam – na dinamização cultural e social de uma freguesia. Eram um ponto de encontro obrigatório. Agora, por cá e por lá, as vozes que ouvimos do interior de muitos destes lugares são apenas ecos da memória dos mais velhos.
A pandemia não veio melhorar este cenário. Aliás, veio expor as fragilidades que já existiam. Os pedidos de ajuda acumularam-se ao longo dos últimos dois anos, perante a inexistência de apoios a fundo perdido.
No Crónico, demos conta, pela mão de Inês Moreira, da situação aflitiva da Sociedade Harmonia Eborense, em Évora, que recorreu a um crowdfunding para pagar a renda e assim poder sonhar ter as portas abertas na reabertura. Em Lisboa, João Moreira da Silva revelou-nos as dificuldades enfrentadas pelo Núcleo A70, a famosa associação do Regueirão dos Anjos. Depois de anos de resistência feroz, o Regueirão sucumbiu à pressão predatória da especulação imobiliária e foi obrigado a encontrar uma nova casa. Para alívio de muitos, estas duas colectividades encontraram a solução para os seus problemas. A Harmonia conseguiu pagar a renda e o Núcleo A70 descobriu um novo abrigo em Marvila. Porém, estes exemplos revelam-se excepções à norma.
Urge, portanto, dar uma nova vida a estes espaços, adaptá-los à maré dos tempos, dar-lhes um novo propósito na comunidade. Se eles foram fundamentais no passado, também o são hoje em dia.
É inegável que o ser humano só pode ser compreendido através da sua natureza social e colectiva. Por muito que pareça ser o tom que conduz o mundo, o individualismo não é a forma natural de nos relacionarmos.
Por conseguinte, o sentido de pertença a um grupo, a um núcleo ou a uma comunidade é indissociável da nossa condição. Talvez ainda não nos tenhamos apercebido completamente da relevância das colectividades neste contexto, mas se elas um dia se extinguissem, daríamos pela sua falta. É nosso dever dar a estes espaços um novo alento e, sobretudo, não deixar o seu legado morrer.
Felizmente, nos últimos tempos, surgiu uma contra-cultura que procura ainda reavivar o espírito das colectividades. O sentido de comunidade continua vivo em muitos sítios. Apesar das lutas constantes para permanecerem abertas, as colectividades vivem de pessoas que acreditam que o seu papel é tão ou mais crucial que qualquer outro tipo de instituição. E se as pessoas são a força de um projecto cultural, então a bola está do nosso lado. Façamos parte da solução.
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