Existe um problema maior em Portugal que urge ser resolvido juntamente com aquele que o Instituto +Liberdade contesta. Esse problema é transmitido diariamente nas nossas televisões e tem perdurado por gerações. Provém de complexos mal resolvidos com quarenta e seis anos de idade e que são cada vez mais notórios, mesmo naqueles que nasceram bem depois dos eventos.
Crónica de Afonso Madeira Alves
No passado dia 12 de Fevereiro, foi formalmente apresentado o Instituto +Liberdade. Angariando mais de cinco mil fundadores pagantes num curto espaço de tempo, a plataforma é encabeçada pelo ex-líder da Iniciativa Liberal, Carlos Guimarães Pinto que, no seu discurso de abertura, justificou a sua criação com uma descrição de um país mergulhado em crise sistémica e que carece de mais educação, mais literacia e melhor informação. É-nos explicado que, por ignorância de um povo, as políticas adoptadas nos últimos quarenta anos não têm tido o escrutínio devido. Assim, rompe este movimento de cariz liberal — um think tank à moda norte-americana — que difundirá os seus valores ideológicos de forma independente, livre e sobretudo, apartidária.
Ora, creio que esta última característica, presente na declaração de princípios do instituto, assombrará toda a sua acção futura. Não porque isto seja uma fachada eleitoral maquiavelicamente desenhada pelos fundadores, nos quais reconheço a pura intenção de fomentar o pluralismo da nossa Democracia, mas sim porque receio que o público-alvo acabará por se reduzir àquele que o próprio líder assume já ter convertido.
Por conseguinte, um instituto que se propõe a combater o tribalismo crescente na sociedade arrisca-se a sofrer do mesmo mal que aponta aos partidos políticos: o fomento de uma tribo treinada para combater o inimigo, agora com mais factos, ainda mais irrefutáveis. Aos dados recolhidos e analisados pelos especialistas do instituto, faltará o contraditório na interpretação dos mesmos. A dificuldade em providenciar respostas racionais únicas recairá no expectável pendor ideológico que as reveste. Por mais iletrada que seja, até a simples lavadeira é craque em identificar falta de imparcialidade. E eu não reconheço o conceito de neutralidade política em pessoa letrada.
Repudio a cultura comentarista do mero bota-abaixo, e por isso tentarei que este texto não se reduza ao preguiçoso maldizer que abunda na praça. Saudar quem mostra a coragem de se “chegar à frente” pelo debate democrático é indispensável, mesmo que não subscrevamos a origem ou o método empregue. Identificar problemas societais e partilhar a tentativa de resposta terá sempre um grau de admiração por parte daqueles que se mostram dispostos a ouvir.
Assumo que, caso me tivesse inscrito, sentir-me-ia muito bem integrado num espaço que defende os valores propostos. Tão bem integrado que facilmente passaria o tempo a concordar e a aplaudir a excelência dos académicos que por lá instruem. Seria um reforço de muitas daquelas que são as minhas convicções, validadas por aqueles que estão dentro do meu espectro. Talvez por isso entenda que este instituto não é para mim.
Tenho uma particular admiração pela figura política de Carlos Guimarães Pinto: alguém moderno, descentralizado, com novas ideias e um enorme sentido de humor; uma lufada de ar fresco face à postura doutoral reinante da nossa classe política. Os graves problemas de literacia que identifica em Portugal, seja económica ou de qualquer outra vertente, têm sido enormes desafios herdados dos tempos da ditadura. Não é rara a vez que me lembro da minha bisavó que viveu a sua vida sem saber assinar o próprio nome. É por ter isto em mente que discordo do pessimismo de Guimarães Pinto quanto ao que tem sido a eficácia do combate travado nestas frentes. A propagação da solução não tem sido apenas travada por falta de oferta. A crença na educação como meio de produção de um amanhã melhor é consensual, mas nem por isso imune a sabotagens. Relembro que falamos de um país que, ainda há poucos meses, assistiu a um debate sobre uma disciplina de Cidadania que atingiu níveis ignóbeis — e quem os atingiu não foram pessoas como a minha bisavó.
Existe um problema maior em Portugal que urge ser resolvido juntamente com aquele que o Instituto +Liberdade contesta. Esse problema é transmitido diariamente nas nossas televisões e tem perdurado por gerações. Provém de complexos mal resolvidos com quarenta e seis anos de idade e que são cada vez mais notórios, mesmo naqueles que nasceram bem depois dos eventos. Resultou numa actual Assembleia que, apesar de nunca ter sido tão plural, dialoga cada vez menos. Resultou na centralização absurda de um país com uns módicos 92.212 km² que não reconhece gente de outros distritos, quanto mais de outros estratos. Resultou, finalmente, numa geração mais nova que aceita a sina de que viverá pior do que os seus pais, e que se submete à habitual lengalenga impregnada do “não tem mal, somos um país de brandos costumes”. Temos, portanto, um problema de disposição, de abertura entre facções, que não se resolverá com movimentos que encerram fileiras contra o outro lado.
Formulo este problema através de uma parábola animal explanada num famoso ensaio do filósofo Isaiah Berlin, O Ouriço e a Raposa. Diz-nos o autor que “a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante”. A dicotomia entre a raposa pluralista, sem visão única e verdadeiramente liberal, e o ouriço monista, obsessivamente centrado no seu pressuposto, é o dilema do homem letrado. Somos, cada vez mais, dominados pelo nosso desejo de certeza, inabalável, nobre, incorrigível, porém altamente perigoso.
Berlin tinha facilidade em classificar qualquer escritor de renome como raposa ou ouriço, excepto o russo Lev Tolstói — na tese berlinista, uma raposa que se queria ouriço. Não acusarei ninguém de ser mais vulpino ou erináceo. Proponho apenas uma recomendação aos que se voluntariam em tertúlias, clubes e quejandos da sociedade civil: o tempo dos profetas como espécie dominante chegou ao fim. A promoção do combate entre dois mundos irredutíveis é um recuo civilizacional. Estamos ávidos, sim, de observadores empenhados, razoáveis, sem pingo de ódio ou agenda. Precisamos daqueles que pregam tanto quanto ouvem, sem receio de serem rebatidos. São estes os novos revolucionários, da direita à esquerda. Serão aqueles que tomarão as melhores decisões e escreverão os melhores livros. E, mais importante que tudo isso, serão aqueles que abrirão a porta a novas discussões das quais a lavadeira fará verdadeiramente parte.
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