As palavras e a forma como as transmitimos contam para a narrativa. O que se notou nesta entrevista é que José Rodrigues dos Santos não reflectiu seriamente sobre isso. Das muitas faltas que o jornalista da RTP mostrou na entrevista posso dizer muito resumidamente que ali houve uma boa dose de falta de sensibilidade aliada a alguma falta de noção.
Crónica de António Vaz Pato
Estudante de Biologia, FCUL
Ainda há uma semana, vi um filme chamado “O Filho de Saúl”, do brilhante realizador húngaro, Lazlo Nèmes. O filme, em resumo, é um murro no estômago. O cenário? O campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau. A câmara acompanha, quase em isocronia, a rotina de um "sonderkommando", Saul Ausländer . Para quem não sabe, um "sonderkommando" era um prisioneiro do campo do sexo masculino, geralmente judeu, robusto e saudável, encarregue de fazer todo o todo o tipo de tarefas que os nazis consideravam “sujas”, desde conduzir os recém-chegados ao campo às câmaras de gás, levar os corpos depois para o crematório, fazer a limpeza das instalações ou reunir os pertences daqueles que eram executados. Estes “prisioneiros-funcionários” tinham um estatuto mais privilegiado do que os outros, mas pouco duravam nas suas funções, uma vez que, ao fim de 4 meses, eram colocados numa lista para serem também eles executados. Viviam isoladamente do resto dos prisioneiros do campo pois testemunhavam os horrores que nenhum outro testemunhava, para além dos próprios nazis.
Uma das cenas mais violentas e viscerais do filme é a sua primeira sequência, onde Saul, em conjunto com os "sonderkommandos" do seu grupo, dirige uma turba de judeus acabada de chegar ao campo para a sala onde (supostamente) se despiriam para “tomar um duche”. Apesar dos esforços dos alemães e dos próprios "sonderkommandos" para diminuir a desconfiança dos recém-chegados, alguns apercebem-se do horror que os esperava. Entre gritos dilacerantes e tentativas de fuga, os "sonderkommandos" conseguem controlar a situação e forçar a entrada dos prisioneiros na câmara de gás. Um portão fecha-se, escondendo os corpos nus e confusos. Saul permanece impávido junto ao portão que acabara de fechar, enquanto do outro lado gritam e pedem ajuda batendo furiosamente na porta que se fechara sobre eles. Ouvimos logo de seguida o som das válvulas de gás e a agonia longa de seres humanos votados a uma morte em que o adjectivo “horrível” é um eufemismo básico e quase falacioso.
Esta cena corresponde mais ou menos aos primeiros 20 minutos do filme e retrata de forma crua e clara o processo de exterminação dos judeus, segundo o plano nazi da Solução Final, processo este repetido até ao expoente máximo da insanidade em muitos campos de concentração e extermínio nazis espalhados pela Alemanha, Polónia e Áustria. “O Filho de Saúl” é uma das muitas obras que nos mostra, sem artifícios nem lirismos, a realidade pura e dura da Shoah, do Holocausto. Na verdade é tão simplesmente isto que vemos nesta fita de Nèmes ou até em livros como Se isto é um homem, de Primo Levi: um genocídio em massa que só uma mente demoníaca de homens como Himmler, Hoess, Mengele ou Eichmann conseguiria planear. Nesta história não há nada de heróico ou romântico, há terror apenas e um terror que nós, a uma distância de quase 80 anos, só conseguimos imaginar através dos testemunhos de quem o viveu.
Foi esta lição que José Rodrigues dos Santos (JRS) esqueceu quando deu uma entrevista, onde falou dos seu mais recente livro O Mágico de Auschwitz. Para que conste, não acuso Rodrigues dos Santos de ser o primeiro a usar este episódio da História moderna para fazer aquilo que os oportunistas gostam mais de fazer: dinheiro. Nem o vou acusar de ignorar ou até defender a as barbaridades nazis da 2ª Guerra Mundial. Não creio que seja isso. Contudo, as palavras e a forma como as transmitimos contam para a narrativa. O que se notou nesta entrevista é que JRS não reflectiu seriamente sobre isso. Das muitas faltas que o jornalista da RTP mostrou na entrevista posso dizer muito resumidamente que ali houve uma boa dose de falta de sensibilidade aliada a alguma falta de noção.
Já houve várias reações a esta entrevista, muitas delas dizendo que as palavras dele foram tiradas do contexto da conversa. Eu vi a entrevista de uma ponta a outra e devo dizer que compreendo quem diz isto, mas isto não desculpa a forma como ele abordou o assunto. Faz-me confusão ver pessoas falar de um tema tão sério com esta leviandade. Talvez porque José Rodrigues dos Santos jamais conseguiria imaginar na sua cabeça a dimensão de um terror como a Shoah. O que deve passar muitas vezes na mente de JRS é: “epah e porque não o Holocausto para fazer mais um best-seller?”. Há aqui um certo oportunismo quando usa o Holocausto para fazer literatura leve. Esta é, sobretudo, a ideia que ele transmitiu e transtorna-me porque parece reduzir a magnitude destes acontecimentos a um modelo de negócio semi-literário.
Contudo, por muito estranho que esta ideia possa parecer a JRS, há uma responsabilidade inerente a quem quer falar sobre o Holocausto, porque nos lembra um estado de plena desumanidade que não podemos permitir que se repita. “Never again” é o que diz a placa que ficou no local onde foi outrora o campo de concentração de Treblinka. Esta é a mensagem que o Holocausto nos deixou. Lembremo-nos, portanto, da responsabilidade que é falar sobre isso, apesar de não o conseguirmos sentir na pele. E que isso sirva de lição a pessoas como José Rodrigues dos Santos.
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