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A minha experiência com covid-19

Confessei-lhe (à enfermeira) que estava desiludida e acima de tudo preocupada, porque afinal o sistema que eu acreditava estar preparado e empenhado em fazer face a este vírus não estava. Para mim foi um choque de expectativas, estava desinformada e por isso estava contente, com confiança na organização do sistema de saúde e dos nossos heróis.


Crónica Aspas Aspas de Diana Cidade Lemos

Estudante da UCP


Esta crónica foi escrita a 13/04/2020


Nos últimos dias, semanas, tenho vivido duas experiências que sei que não vou esquecer dado todo o enquadramento social e histórico. A primeira seria a minha experiência enquanto jovem infetada com Covid-19, a segunda seria a minha experiência com o sistema de saúde do meu país e com todo o processo adotado para fazer face à pandemia do momento. Devo sublinhar que esta foi, e ainda é, a minha experiência, o que eu vi e vivi. E não querendo generalizar o que experienciei, no fundo, tenho imaginado que, generalizando a minha experiência, e aplicando tudo o que me foi aplicado do processo em todas as vítimas do vírus em Portugal, o caso seria não grave, mas gravíssimo. Confuso.


Não sei por onde começar, portanto começarei por antes do início. O caos começou na China, como sabemos, e na comunicação social, que me o deu a conhecer. Não me assustou, mas chateou-me, confesso. Já não eram notícias o que eu ouvia, chegava a ser spam diário, com um ou outro acento mais diferente e credível que cativava. Contudo, entendo que fosse necessário.

Chegou à Europa, tudo bem, não há que temer, há que saber fazer frente. Não sou, de todo, frequentadora de hospitais, mas ouço que temos dos melhores serviços de saúde do mundo, portanto vou acalmar-me e não fazer disto um problema. Vou ser prática: caso o português seja infetado, o hospital tudo fará para o salvar, porque os processos e os meios estão definidos, e a supervisão dos mesmos acredito que seja rigorosa. Temos dos melhores serviços de saúde do mundo. Calma.


Estávamos em inícios de Março, ponderei a minha viagem à Suíça para esquiar, não me pareceu completamente imprudente porque “Covid-19” era algo ainda, embora sempre presente, muito distante da minha realidade. E fui. Dois dias a seguir os portugueses foram para a praia e os supermercados esvaziaram. Nos Alpes continuava tudo calmo...


O dia a seguir acordou com os supermercados suíços vazios, com as estâncias de ski fechadas e com a notícia de que as colegas de trabalho da amiga que tinha vindo comigo esquiar estavam infetadas. Nesse dia eu também acordei, tirei a máscara e as luvas do ski e coloquei a máscara e as luvas cirúrgicas, e voltei para Portugal. Sem nenhum medo, com calma e com toda a minha confiança no sistema, caso algo acontecesse.


Avião vazio, aeroporto fantasma, que estranho, que diferente! Zero controlo na entrada e saída de pessoas no país? Tudo bem...


Um pouco desconfiada, e por precaução, achei prudente isolar-me da minha família. Um pouco atrasada, dia 17 de Março comecei a minha quarentena, já os portugueses tinham começado uns três ou quatro dias antes.


Todos os dias media (e meço) a febre, de manhã e ao deitar, e esperava sem querer a tosse. Cerca de quatro dias depois recebo a notícia de que a minha amiga não tinha sido infetada pelas colegas de trabalho, que alivio! Então eu também estou, de certeza, livre de perigo! Será melhor, no entanto, continuar isolada por mais uns dias, não quero pôr ninguém em risco, não há necessidade nenhuma.


Continuei com a minha rotina, sem febre, sem tosse.


No sexto dia de isolamento, acordei a sentir-me esquisita, sentia febre, mas não tinha. Dores no corpo, arrepios quentes, dores de cabeça, e um cansaço que me marcou por não ter causa aparente. O que seria? Início de Primavera muito provavelmente, ainda por cima estava no campo! Liguei à minha mãe, comentei com ela que estava um pouco preguiçosa, ainda nem a loiça tinha lavado, e estava a comer por comer, pois não sentia o sabor da comida. Nem o cheiro. A minha mãe está mais por dentro do assunto que eu e aconselhou-me a ligar para a linha de apoio SNS 24, sem alarido, só por precaução. Ela já tinha ouvido comentar que perda de olfato e paladar podia ser qualquer coisa. Eu não. Disse-lhe que não ia ligar, que não havia necessidade disso, mas após uma pesquisa pouco intensa na internet, marquei o 808 24 24 24. Fui atendida por uma enfermeira simpática que ia passar a chamada à equipa médica. Só não se lembrou de dizer que o iria fazer depois. E por isso esperei cinco minutos, dez, um dia, outro e mais outro, e liguei de novo para o 808 24 24 24. Desta vez atendeu-me uma enfermeira já não tão simpática. Cansada, entendo. Perguntou-me se eu estava com alguma hemorragia. Não percebi. Ela explicou-me o que era uma hemorragia. Ela não percebeu. Eu sei o que uma hemorragia é, o que não percebi foi o porquê da pergunta no contexto do coronavírus. Relembrou-me que a minha chamada seria reencaminhada para a equipa médica e que eu só tinha de esperar, ponto final. Tem razão, eu não tenho sintomas acusadores de nada, só tenho é de respeitar quem os tem, ponto final.


Sempre com uma atitude de despreocupação, calma, "confiançuda" que essas coisas só acontecem aos outros, fui ao Google, confesso. Pesquisei “sintomas Covid-19” para me informar, e qual não é o meu espanto quando, no topo dos resultados de pesquisa, aparece “Perda de paladar e olfato” ao invés de febre e tosse. Foquei-me na fonte desta informação e não sendo a Direção Geral de Saúde, descredibilizei. Comentei o sucedido com a minha mãe e acrescentei que quando estou com congestão nasal também não saboreio a comida e não sinto os perfumes, nada que nunca me tivesse acontecido. Comentei comigo o mesmo e preocupei-me por não estar com congestão nasal, estava a respirar sem qualquer tipo de dificuldade. Não dei importância, mas a minha mãe deu. A linha de apoio SNS 24 não me retribuía a chamada para que eu pudesse ir fazer o teste e despistar todas as desconfianças, e a minha mãe preocupava-se. Talvez não devesse contar esta parte, mas vou contá-la. Não há hospitais privados onde eu vivo e a minha mãe queria um teste para mim, é normal. Conseguiu e ligou-me a pedir que dia 24 de Março fosse às urgências do hospital fazer o teste para que se percebesse se eu tinha ou não Covid-19.


Aqui começou o meu confronto com a realidade que eles nos falam nos órgãos de comunicação social. Mal cheguei às urgências já estavam à minha espera, e foram-me dadas algumas instruções básicas desde o exterior ao interior do hospital. Entrei, e confesso que estava à espera do maior dos caos, com imensas pessoas a passar mal, mas não havia ninguém. Entrei, levaram-me até uma sala onde fui muito bem recebida por uma enfermeira e por um médico. Fizeram-me as perguntas de rotina, mediram-me a tensão, auscultaram-me, verificaram a minha frequência cardíaca, estava com taquicardia, nada de grave. O médico perguntou-me, à distância, os meus sintomas. Eu disse que me sentia muito cansada, dores de cabeça e perda de paladar e olfato. Ele foi lá dentro, regressou e escreveu em voz alta: “Dores de cabeça e perda de apetite”. Não, não é isso e não foi isso que eu disse, pensei em voz baixa. Fizeram o teste com a famosa zaragatoa, primeiro no nariz e depois na garganta, e tiraram-me sangue. Não havia pensos rápidos para me colocarem depois da agulha... tudo bem, não é grave, um pedacinho de algodão faz o mesmo efeito.


Estava feito, agora só tinha de esperar pelos resultados, e sem me dizerem nada pediram-me que fosse para outra sala. Só não me disseram que teria de esperar pelos resultados naquela sala, com dez por onze azulejos de área, que tive tempo de contar, e uma cadeira para me sentar, esperar e desesperar. Estive quatro horas sem qualquer tipo de indicação, informação ou comida, até que entrei em contacto com um amigo, que começou agora a vida de médico e estava naquele hospital na parte da covid-19. Pedi-lhe algumas informações sobre quanto tempo mais teria de ficar ali fechada e se me podia trazer algo para eu jantar. Ele percebeu a minha situação e fez o que pôde. Pouco tempo depois, uma enfermeira foi à sala-cela dar-me a possibilidade de voltar para casa e receber os resultados do teste no dia seguinte, com a condição de cumprir as normas recomendadas pelo SNS para utentes em isolamento, as quais eu até já estava a cumprir, por precaução. Deu-me uma folha com todas as recomendações e voltei para casa.


No dia seguinte, esperava eu o contacto do hospital, como tinha ficado prometido, com o resultado do teste, mas quem me contactou foi a minha mãe. Tinha-lhe ligado um médico amigo, logo pela manhã, pois tinha visto o resultado do meu teste. Deu inconclusivo. Só não foi o hospital quem me deu a informação, pelo que não tive oportunidade de fazer muitas mais perguntas, nem quando poderia repetir o teste.


Contactei novamente a linha de apoio SNS 24. Não atenderam. Atendeu o gravador a informar-me que já tinha esgotado as minhas tentativas de contacto... estava a ser insistente, talvez até chata, e à terceira tentativa de contacto fui parada. Justo. Há pessoas a passar bastante mal e eu não tenho sequer sintomas creditados pela DGS. O melhor é ficar em casa como todos os outros, que isto passa. Assim o fiz, e ainda bem que, por sexto sentido, prossegui isolada da minha família.


Prometido é devido, e passada uma semana da enfermeira da linha de apoio SNS 24 reencaminhar a minha chamada para a equipa médica, fui ouvida por um médico. Expliquei os meus sintomas, eu desvalorizei, ele desvalorizou. Contudo, por precaução ou, diria até, por alguma persuasão e insistência da minha parte, visto que estava curiosa depois do primeiro teste ter dado inconclusivo, disse-me para que no dia seguinte me deslocasse ao Centro de Saúde, onde seria vista por um médico e testada. Para que não me falhasse nenhum passo e uma vez que não tinha como falar com aquele médico de novo, caso me surgisse alguma dúvida, fiz mais algumas questões. Garantiu-me que uma notificação tinha sido enviada para o Centro de Saúde em questão e que no dia seguinte estaria um médico à minha espera. Escrevi tudo numa folha para não haver esquecimentos. Não tenho experiência com problemas de saúde e visitas a médicos, portanto queria saber como fazer tudo direito.


Como combinado, dirigi-me ao Centro de Saúde, onde mais uma vez, não havia ninguém. Tive a sorte de não encontrar a atmosfera caótica que me mostravam as notícias na televisão, nem nas urgências do Hospital nem no Centro de Saúde. Cheguei, entrei e pensei: “Isto só visto, porque contado ninguém acredita!”. Mas vou contar na mesma. O ambiente era de descontração, duas senhoras na receção, outras tantas na parte de trás. Aquele clima de depois de almoço, conversas cruzadas e cochichos para cá e para lá. Entrei e era só eu no que toca a pacientes. Reparei em algumas fitas a delimitar espaços e cadeiras espalhadas, já estavam a adotar algumas medidas no espaço. Apresentei-me e confesso que tive de me fazer chegar, falei um pouco mais alto para que me ouvissem e quebrei o ambiente. Expliquei a minha situação. Pânico e um grande rebuliço que não estava à espera, não achei adequado e não gostei. Impulsivamente pedi, em tom de ordem, que parassem e que não tivessem medo de mim. O cúmulo. Rapidamente percebi que ali as medidas só tinham sido tomadas na arrumação e decoração do espaço. As enfermeiras discutiam entre elas o que fazer, para onde e para quem me deviam encaminhar. Não havia um processo definido como eu achei que havia. “Não! Ela tem de esperar é lá fora na rua!”. E assim esperei. Enquanto esperava, não sei ao certo por o quê, via as enfermeiras do outro lado do vidro da porta a espreitarem e a olharem para mim com medo. Como referido há pouco, foi uma daquelas situações que “só visto”!


Passados alguns minutos, veio uma enfermeira ao meu encontro, confesso que com uma atitude muito mais serena e competente, e pediu que a acompanhasse. Entrei, apresentei-me e expliquei a minha situação. Tudo de novo, mas agora com a calma e profissionalismo esperado. Não tinha qualquer tipo de notificação por parte do SNS 24 a informar da minha visita. Insisti porque me tinha sido garantido pelo médico do SNS 24 que estariam à minha espera para ser vista e testada. Confirmou-me novamente que não, mediu-me a febre, fez-me perguntas, acompanhou-me à saída e indicou-me que me deslocasse de seguida às urgências do Hospital. Confessei-lhe que não estava nada contente com o sucedido, não ia de encontro aos procedimentos que as pessoas esperavam. Confessei-lhe que estava desiludida e acima de tudo preocupada, porque afinal o sistema que eu acreditava estar preparado e empenhado em fazer face a este vírus não estava. Ela confessou-me que infelizmente partilhava a minha opinião, embora não o devesse confessar. Foi transparente e preocupou-me ainda mais, não por mim, mas pelas pessoas que estão mal e que estão a confiar tudo no empenho dos profissionais de saúde. Para mim foi um choque de expectativas, estava desinformada (ou mal informada) e por isso estava contente, com confiança na organização do sistema de saúde e dos nossos heróis.

Despedi-me da enfermeira com as devidas precauções e distâncias de segurança e fiz uma caminhada até às urgências do hospital. Entrei nas urgências, identifiquei-me, fizeram-me as perguntas normais, colocaram-me a pulseira verde e pediram-me que me deslocasse para a parte das urgências destinada aos casos, e possíveis casos, com Covid-19. Mais uma vez não experienciei o ambiente caótico, era apenas eu e duas senhoras na sala de espera, que tinham tosse e uma pulseira amarela. Enquanto esperávamos ouvia-se, por aqui e por além, “desinfeta-se aquela sala?”, “é preciso fazer isto?”, “é preciso fazer aquilo?”. O caos era-me agora evidente, mas noutros moldes. Onde estão os processos definidos e rigorosos? Nas minhas expectativas.


Entretanto, e enquanto esperava na sala de espera, entrou um enfermeiro. Reparei que, comparativamente ao que eu me lembrava, da primeira vez que tinha ido fazer o teste, os profissionais de saúde estavam agora muito melhor equipados e protegidos. Fez-nos algumas perguntas de rotina e voltou-se para mim. Mudou o tom para um tom mais gozão e, atrevo-me até a dizer, desrespeitoso, e iniciou toda uma discussão acesa comigo, com base no facto de eu não ter de estar ali, pois não tinha sintomas e era jovem.


Perguntou-me se ali estava para contrair, de facto, o vírus. Eu tentei não me exaltar por dois motivos, por um lado concordava com ele pois não tinha sintoma nenhum aparente e tinha de respeitar e dar lugar a quem tinha, e por outro lado porque compreendia que ele poderia estar exausto e cansado, como nos dizem os órgãos de comunicação social que os profissionais de saúde estão. Constatei-lhe que concordava com o facto de não ter sintomas graves nem sintomas creditados pelas entidades responsáveis pela saúde, mas pedi-lhe que se colocasse no meu lugar: se tivesse tido um teste com resultado inconclusivo, certamente também gostaria de saber se tinha, ou não, Covid-19. Acrescentei que estava isolada da minha família há duas semanas e que gostaria de uma resposta concreta para saber se poderia, ou não, juntar-me a eles em casa. Atacou com um argumento que eu até ali respeitava e achava grande, e utilizou as seguintes palavras, conjugadas com um tom desprezível, para me o fazer chegar: “Só para a calar, sabe há quanto tempo eu não vejo a minha família? Há mais tempo que você, por isso não me venha com essa falinha!”. Confesso que a seguir a estas palavras não me contive, dada tremenda falta de respeito e, de certa forma, abuso de poder, e respondi, com irritação, que agradecia o esforço dos profissionais de saúde nesta fase mais difícil mas que, na verdade, era o seu trabalho e dever, e estava a ser pago para isso, enquanto que no meu caso, nenhum se aplicava. Eu estava em isolamento voluntário por prudência; não estava apenas isolada do mundo, estava isolada da minha família, e, portanto, queria ter uma resposta final para que isso acabasse. Não gostou da minha resposta menos politicamente correta, e continuou a tentar atacar-me descabidamente. Comecei a sentir que, de facto, talvez não tivesse a legitimidade pretendida para estar ali, o melhor seria ir para casa e esperar o regresso do paladar e do olfato, porque o mais provável era ser só um acaso. Levantei-me, dei-lhe a razão que ele queria que eu lhe desse, desejei as melhoras às senhoras que estavam na sala comigo e dirigi-me á saída. Fui de imediato intersetada por uma enfermeira que me impediu de sair e pediu que me acalmasse. Voltei para a sala de espera e, pouco tempo depois, um enfermeiro veio ao meu encontro e pediu desculpa pelo colega. Agradeci e acompanhei-o até à sala onde me fizeram de novo o teste. Desta vez estavam duas enfermeiras a decidir entre si quem me ia fazer a zaragatoa, lá se resolveram e repeti a desagradável experiência: primeiro nariz e depois garganta, ou vice-versa, já não me recordo. Desta vez mandaram-me logo para casa, pediram o meu contacto e prometeram que me contactariam no dia seguinte para me comunicarem o resultado. Foi tudo muito mais rápido, foi só entrar na sala, fazer o teste e ir embora.


Como combinado, no dia seguinte telefonaram-me para dar a informação que o meu teste tinha dado inconclusivo novamente, e pediram-me que fosse repetir o teste ao Hospital, no dia seguinte. Aqui estranhei e, pela primeira vez, eu própria comecei a achar que estava infetada. Comecei a traçar todos os meus passos desde que tinha voltado da Suíça para perceber se tinha havido algum contacto mais direto com alguém, alguém que eu pudesse ter posto em risco. Foi como uma prova inconsciente de altruísmo. A minha preocupação sincera não foi a possibilidade de estar infetada, mas sim a possibilidade de ter infetado alguém. Os meus sintomas eram leves, no entanto, caso eu tivesse infetado alguém, os sintomas poderiam ser bem diferentes e piores nessa pessoa.


Sentia-me um pouco confusa e curiosa, como assim inconclusivo? Como assim dois testes inconclusivos? Estaria alguma coisa a ser mal feita? Tinha até lido que o Presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, Ricardo Mexia, assegurou à revista Visão Saúde que não existe a possibilidade de os testes feitos ao coronavírus, em Portugal, darem resultado inconclusivo, muito menos por duas vezes. Enfim, já não entendo nada. Já não sei se confie, se não confie. Começo a ficar preocupada com Portugal.


Repeti o programa de sair de casa no dia seguinte. Fiz a minha caminhada até ao Hospital, foi só entrar na parte das urgências destinada ao Covid-19, acenar ao longe para que me vissem e soubessem que ali estava à espera, e entrar. Importante referir que estive sempre equipada com máscara e luvas cirúrgicas que ainda tinha por casa. Mais uma vez, não havia ninguém no Hospital para além dos profissionais de saúde, e eu. Foi só entrar, sentar e zaragatoa. Mas foi diferente. O meu nariz sangrou dada a profundidade a que a enfermeira recolheu a amostra, desta vez. Mas desta vez resultou. Voltei para casa e no dia seguinte fui contactada por um médico preocupado, que confirmou as suspeitas da minha mãe... eu estava com Covid-19. Sem querer tremi. Mas reagi e nestas situações há que ser prática. Estou com Covid-19 e agora? O que vem a seguir? O que preciso de fazer? Fique em casa sem qualquer tipo de contacto com a sua família, se tiver dores tome paracetamol; será acompanhada duas vezes por dia por um médico, via chamada telefónica, disse-me ele. Passados catorze dias ser-lhe-á feito um teste para que dê negativo, e 48 horas depois fará outro teste, para confirmar o primeiro negativo.


E assim começou a minha experiência enquanto jovem infetada pelo vírus Covid-19.

Ao longo destes catorze dias, ligaram-me quatro vezes apenas, cinco no máximo, talvez... Mas tudo bem, não é grave. Só é grave a evidente falta de compromisso com o doente, que está em casa à espera das chamadas prometidas e do acompanhamento que merece. Eu tive muita sorte com os sintomas, mas e quem não teve? E eu penso: talvez não exista um procedimento específico definido para estes pacientes, ou não está a ser cumprido. Mas então, porque me disseram eles que existia? Como assim não existe ou não está a ser cumprido? Não percebo e preocupo-me. Não me preocupo apenas com esta situação em concreto, preocupo-me com tudo o que eu vi falhar até aqui, e que acumulado é triste de se ver.


Lá fora todos são tratados como infetados mesmo sem serem, ninguém se pode chegar, nem tocar, nem aproximar. E cá dentro? No fundo, entendo. Cada caso é um caso e o meu é diferente. Não tenho sintomas graves, nem legítimos. Será que faço parte daqueles números oficiais da DGS? De certeza que sim, eles é que estão na linha da frente desta pandemia, só temos que confiar... Senão íamos confiar em quem?


Os dias passaram, e continuam a passar. A rotina é obvia. O tempo sobra. Já organizei o quarto e as ideias. Já cortei o meu próprio cabelo. Ainda não fiz pão nem bolos, como todos parecem já ter feito.


Há uns dias ligaram-me do Hospital. Disseram que iria receber duas mensagens, cada uma com os dados necessários para marcar os dois últimos testes ao coronavírus. Perguntei se havia um período de tempo mínimo entre os testes. Não sabiam. Eu ouvi que era 48 horas noutro sítio, por isso marquei-os com um dia de intervalo. Não há nenhum papel com isso escrito?


No dia seguinte ligaram-me da linha de apoio SNS 24. Disseram que iria receber duas mensagens para marcar dois testes ao coronavírus. Já tinha recebido essa informação, portanto aproveitei o contacto para fazer outra questão: iria ficar imune ao coronavírus? A enfermeira respondeu-me o seguinte: “Se o teste der positivo e não tiver sintomas, ótimo! Terá apenas de ficar catorze dias em isolamento”. Fiquei um pouco confusa. Tinha em mente que estes dois últimos testes teriam de ter resultado negativo, e não testariam a minha imunidade. E eu já estava a cumprir os catorze dias em isolamento... Não percebi... e penso que do outro lado do telefone também não. Comuniquei que não estava a perceber, uma vez que eu já tinha testado positivo e cumprido os catorze dias (quase). Qual não foi o meu espanto com o espanto da enfermeira. “Mas você já testou positivo?”. Tantas perguntas na minha cabeça naquele momento. Mas só fiz algumas. Como não tinha essa informação registada? Porque me estava a ligar, então? Não há comunicação entre toda a comunidade médica? Pediu que me acalmasse. A verdade é que não havia muito que pudesse fazer. A culpa também não seria da senhora do outro lado do telefone. Mas com certeza também não seria minha. Seria de quem? Enfim...


Eu aí percebi muitas coisas. A desorganização de um sistema que eu achava ser organizado e rigoroso. Percebi que, demasiado provavelmente, não faria parte dos números oficiais que nos mostram e que mostram ao mundo. Nem eu nem os como eu. Percebi o caos do serviço de saúde. Um caos diferente do da televisão.


Hoje fui fazer o penúltimo teste ao coronavírus. Ontem passei a Páscoa aqui comigo e amanhã passarei o meu aniversário. Quarta-feira espero que tudo acabe. E depois? Estarei imune, não estarei? Depois vê-se.


Foi uma experiência e uma lição. Percebi a importância do espírito crítico e o impacto que pode ter para ajudar outros. É importante que se perceba que, no que toca ao coronavírus, sintomas leves têm toda a legitimidade e devem ser ouvidos. Jovens são potenciais transmissores da doença aos mais velhos, os quais podem não ter a mesma sorte com a sintomatologia. A perda de paladar e olfato é um denominador comum da doença nos jovens, deve ser comunicada à população e ouvida pelos médicos. Por favor. Todos ficamos alertados com a tosse e com a febre. Eu não tive tosse, nem tive febre. Eu e tantos como eu. E se eu tivesse ido ter com os meus pais e avós? E se eles também?


Se há rigor para ativar Estado de Emergência, fechar tudo, pôr um país em casa (parte sem poder trabalhar para comer), impedir que nos despeçamos de um ente querido que faleceu, etc. Também devemos exigir rigor nos processos e planos de combate ao vírus, na linha da frente, bem como no empenho e organização de toda a comunidade médica.

Com a saúde não se brinca.




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