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A murga canta por aqueles que caíram

A murga é a expressão cultural mais forte do Uruguai e o mais importante a saber sobre ela é que pertence ao povo. São letras com humor, sátira e crítica que funcionam como hinos que, cantados em conjunto, unem a comunidade e fortalecem uma identidade coletiva. São canções criadas pela sociedade e onde a sociedade se vê refletida.

Crónica de Maria Leonor Carapuço

Foi em plena pandemia e em pleno verão sul-americano que eu aterrei no Uruguai, no dia 6 de fevereiro de 2021. Vi-me obrigada a ficar fechada em quarentena, com uma vontade frustrada de conhecer tudo o mais depressa possível, justamente numa das minhas alturas preferidas do ano: o Carnaval.


A frustração não acaba aqui. Aprendi, sem poder experienciar, que o Carnaval uruguaio é o mais longo do mundo, celebrado durante mais de 50 dias. A sua celebração é complexa: envolve desfiles, carros alegóricos e também envolve o único lugar no mundo onde se pode ouvir 2.000 tambores a tocar em uníssono, no “Desfile de Llamadas”.


E nenhuma destas é a melhor parte do Carnaval uruguaio.


17 pessoas em cima de um palco - um “tablado”, em rigor - com vestuário e maquilhagem excêntricos e de aparente influência veneziana. Três dedicam-se à percussão e os restantes 14 cantam até “lhes partir a garganta”. Cantam com humor e com ironia sobre as dificuldades do seu dia-a-dia. Cantam sobre episódios do quotidiano, da história e política uruguaia e da sua cultura popular. Isto é a murga, uma das formas de expressão cultural e artística mais interessantes e divertidas que conheci até hoje.


“Lo que la gente le pide es que haga reír, que critique y que haga emocionar.”


A murga é a expressão cultural mais forte do Uruguai e o mais importante a saber sobre ela é que pertence ao povo. Diferentes grupos de murga entram em competição com peças criadas de raiz para esse Carnaval, em “tablados” espalhados não só por Montevideu, mas por todo o Uruguai. Meses antes, ainda no ano anterior, os grupos começam a ensaiar - ensaios esses que são abertos ao público, o que permite às famílias memorizar e cantar os repertórios. São letras com humor, sátira e crítica que funcionam como hinos que, cantados em conjunto, unem a comunidade e fortalecem uma identidade coletiva. São canções criadas pela sociedade e onde a sociedade se vê refletida.


“Lo que pasa es que la esencia del carnaval, su ritual, es toda la gente junta disfrazándose. Después empezó a dividirse y algunos nos subimos y otra gente quedó aplaudiendo, pero pobre del que crea que son cosas distintas. Es la misma cosa. Los que se olvidan corren el riesgo de perderse una cosa maravillosa, que es el carnaval.”

Eduardo Rigaud in Fuera de Concurso, de Tania Tabárez



Esta experiência é também política, porque a murga é muitas vezes (ou sempre) contestatária. Durante a ditadura uruguaia (1973-1985), e apesar de nunca terem proibido as festividades, o governo optou por uma estratégia de retirada de apoios à murga e ao Carnaval, baseando-se numa crença mal calculada de que ambos morreriam sozinhos. Mais tarde, nos anos 80, assistir e apoiar determinadas murgas era considerada uma declaração de princípios. A murga, como toda a cultura, é uma forma de participação na democracia.


Um exemplo paradigmático da sua força inesgotável é a murga “La Soberana”, criada por José “Pepe Veneno” Alanís e os seus irmãos no ano de 1969. Um ano depois da sua criação, ganhou o primeiro prémio do concurso oficial de murgas do Carnaval uruguaio. Esta murga posicionava-se politicamente contra o governo vigente, pelo que, após o golpe de estado de 1973, saiu às ruas de Montevideu vestida com as cores nacionais. Este feito levou à sua censura e perseguição dos seus integrantes, levando à detenção de “Pepe” por “atentado moral contra as Forças Armadas, vilipêndio e escárnio”. Depois de três anos de reclusão e tortura, “Pepe” refugia-se na Suécia.


E nenhum destes eventos levou ao desaparecimento da “La Soberana”. Com o regresso da democracia, também regressou esta murga, que participou no concurso de 1987, e de novo em 2006 e 2007, ainda com alguns dos seus membros fundadores.


Este ano não houve Carnaval e a sua falta foi sentida. Este teria sido o primeiro Carnaval desde que assumiu posse um governo de direita no Uruguai, depois de 15 anos de governação da coligação de esquerda “Frente Amplia” (remember Pepe Mujica?). Bem ou mal, a murga teria muito para dizer sobre esta mudança política.


Mas a murga despede-se sempre a prometer voltar e, para bem de todos nós - e dos uruguaios em particular - certamente que para o ano as ruas de Montevideu encher-se-ão novamente de “candombe” e festa. No entanto, como a minha sorte é tanta, nessa altura já cá não estarei para a ver.

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