Dar primazia a estes espaços unos, autênticos safes spaces, revela-nos um país que prefere um debate comandado por ídolos do antigamente.
Crónica de Afonso Madeira Alves
Existe um fenómeno já notado, mas parcamente esmiuçado. Voltei a avistá-lo em todo o seu esplendor nestes dias cinzentos de rescaldo a *qualquer que seja o assunto desta semana*. Passo a descrevê-lo:
Em algo que considero ser de princípio pouco secular, constatei que há quem se informe através daqueles espaços de comentário político de Personalidade X, cidadão exemplar da nossa praça, voz de um povo à deriva, cujo discurso único requer ser ouvido, qual Sidarta Gautama, — mas não tanto rebatido, qual Pai a dar um ralhete aos filhos. Tais sermões são transmitidos semanalmente num tal canal, prontos a serem digeridos juntamente com o jantar recém-tomado. À realização, Personalidade X solicita não mais do que a presença de um profissional da comunicação que lhe faça questões previamente acordadas, advertindo-o caso o entrevistador tenha a descortesia de tentar ir para fora de pé. No final da pregação de trinta minutos, o espectador ganha uma visão inequívoca sobre a problemática corrente — e ainda um bónus — na forma de recomendações de vários livros patrocinados pelo mestre que, assumindo, heroicamente os terá lido na sua íntegra no escasso tempo livre que lhe resta. A compra de qualquer um dos livros é de carácter facultativo, omite-se durante a promoção compulsiva.
- Para a semana há mais. Obrigado e boa noite. – despede-se o profissional da comunicação no estúdio.
- Já não passo sem ouvir Personalidade X. – exalta o crente do tudólogo em casa.
Não apontemos nomes, géneros ou idades. Individualizar tende a toldar-nos o discernimento. Foquemo-nos antes na origem e nas sequelas que esta prática de intelectualidade corroborada pelo universo mediático nos tem trazido.
Concedam-me a oportunidade para dar a minha visão rudimentar daquilo que é uma opinião em Democracia: não interessa de quem é, ou de onde vem, — de pouco vale a opinião dada por alguém que não permite a sua refutação no mesmo palco. Dar primazia a estes espaços unos, autênticos safe spaces, revela-nos um país que prefere um debate político comandado por ídolos do antigamente. São estes barões que, recostados numa cadeira banhada a imunidade, com gestos professorais, nos garantem que “já tinham avisado”, limpando para debaixo do tapete todas as vezes em que ficaram a dever um pedido de desculpas por desinformação. Sem pudor, substituem-se a especialistas e escandalizam-se face ao que lhes é divergente. Cópias de um estilo que aponta a Belém, fundamentam os seus takes iconólatras com a intuição apurada que a experiência lhes deu.
De notar o quão interessante é observar este estilo vindo de personalidades que cresceram inspiradas com Conversas em Família. Não cresceríamos mais com conversas entre famílias?
No entanto, seria injusto canalizar toda a culpa para aqueles que são apenas convidados a dar o seu contributo, por tantos estimado. Esta reside, também, no jornalista e na sua condução em piloto automático durante tais segmentos. Se a postura é de total subjugação perante o comentador-residente, então temo que o fenómeno nada mais seja do que um monólogo aprovado por um canal que se serve de uma das suas caras da informação como adereço didascálico. O facto de nada disto poder ser confundido com a intervenção desses mesmos jornalistas noutros formatos (sendo até acusados de irem longe demais nas entrevistas que fazem a figuras políticas no activo), mostra-nos que há um certo compadrio que torna estes espaços pouco democráticos. Sabemos que o jornalista tem argumentos à sua disposição, mas aceita ser impedido de os utilizar. No fim, ambos os intervenientes saem intocáveis.
Larry King, o já saudoso locutor norte-americano e autor de mais de 50 000 obras na arte de entrevistar, dizia que “nunca se aprende nada enquanto se fala”. Palavra de Rei, diria consensual: quantos de nós não gostamos de nos afirmar “bons ouvintes”?
Ora, não é neste sentido primário que King aplica a sua citação inspiradora. Ele, tal como qualquer mero entrevistador, saberia certamente ficar apenas calado e ouvir. A verdadeira qualidade advém de, após escuta atenta, não se ficar pelo que ele caracterizava como softball questions — ou seja, perguntas da treta. Desengane-se quem pensa que isto se refere simplesmente a perguntas de resposta fácil ou dócil. A definição não está no tom, mas sim na repetição.
O conceito de softball questions é exemplificado por King no seguinte cenário: Se algum dia entrevistasse Osama Bin Laden, uma softball question seria confrontá-lo imediatamente acerca do ataque terrorista de sua autoria no dia 11 de Setembro de 2001. Tal revelar-se-ia uma pergunta da treta, não só porque desenvolveria desde logo uma barreira que se arrastaria ao longo da entrevista, mas também porque essa seria a pergunta expectável à qual Bin Laden já teria uma resposta bem ensaiada. Logo, a melhor pergunta seria aquela que o desarmasse, mas que ao mesmo tempo o assegurasse do comprometimento profundo do entrevistador com a obtenção da verdade: “Porque é que escolheu abandonar uma vida de privilégio para acabar a viver isolado numa montanha?”.
De forma gradual, a conversa levaria aos motivos que encaminharam o terrorista saudita a planear o infame dia, sem que este se apercebesse que se estava a deitar na confortável cama que King lhe fez.
Curiosamente, Larry King era acusado de ser soft e, após vinte e cinco anos no ar, a CNN trocou-o pelo estilo confrontacional de Piers Morgan, com tudo o que isso veio a significar para o espectáculo em que se tornou o jornalismo norte-americano nos últimos anos.
O exemplo de Larry King não serve para satisfazer quaisquer saudosismos da velha escola do jornalismo. Serve, sim, para demonstrar que, quando se tem um papel tão nuclear na sociedade como aquele que tem o jornalista, este não pode abdicar de exercê-lo em dado momento sem esperar mossa na confiança que ajudou a construir entre público e comunicação social. Tenho noção da exigência do meu pedido. Este engloba uma complexidade de abordagem e um ridículo nível de integridade que torna o jornalista em persona non grata. Nenhum barão gosta de ser confrontado; não foi essa a proposta que lhe fizeram. E tanto mais que nenhum canal gosta de jornalistas irascíveis.
É essencial que, para os combates que se querem travar nos dias de hoje, a classe jornalística seja o braço armado daqueles que prezam a Democracia. Que faça das entrevistas e da investigação uma arma, mesmo sabendo que esta é uma faca de dois gumes. Sabemos o quão difícil tem sido detectar as informações que nos chegam em segunda mão através de alguém que nos dita como nos devemos sentir em relação às mesmas. Há que saber distinguir entre espaço de opinião e espaço de informação; entre espaço de comentário e espaço de debate democrático. Dado que hoje em dia é bastante frequente confundir-se superioridade intelectual com influência social, a identificação destes barões como elite é perniciosa, pois, por demasiadas vezes, não têm sido os mais capazes.
Se é verdade que nunca fomos tão livres de expressar o nosso ponto de vista, não é consequência inerente dessa condição a necessidade que ainda temos de elevar certas opiniões, consideradas mais qualificadas, face à opinião pública.
Que procuremos os qualificados e que o jornalismo os prefira aos assinalados. É este o anseio de quem, na procura incessante pela verdade, sabe que Carlos Drummond de Andrade terá sempre razão: a porta desta está aberta, mas dividida em duas metades, diferentes uma da outra.
Recomendações desta semana:
O Estado em Que Estamos, de Luís Marques Mendes
Portugalando, de José Miguel Júdice
Os Burgueses, de Francisco Louçã
A Revolução e o Nascimento do PPD, de Marcelo Rebelo de Sousa
Blockchain Revolution, de Miguel Sousa Tavares
(Como Paulo Portas não é autor, recomendo este vídeo)
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