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A poética do que (ainda) escapa à compreensão: “RUÍDO” de Sofia Dias E Vítor Roriz

de José Maria Cortez


Os performers ocupam o espaço do palco do Auditório Emílio Rui Vilar, na Culturgest. A mise-en-scène desenha-se em tonalidades cinzentas e negras. Sentados, placidamente convidam-nos a deitar sobre eles o nosso olhar. “What do you see?”. É com esta questão que somos chamados a entrar na mais recente criação da dupla de coreógrafos Sofia Dias e Vítor Roriz.


A verbalização textual é acompanhada por uma torrente de movimentos esguios, fluídos, por vezes simples, outras mecânicos e alguns animalescos, pelos quais os performers — Connor Scott, Lewis Seivwright, Maria Ibarretxe, Natacha Campos, Vi Lattaque — nos convocam a abraçar o ruído.


Simultaneamente, o coreógrafo, aqui performer, Vítor Roriz, senta-se do lado esquerdo do palco. À sua frente tem uma mesa, cujo tampo é gravado e projetado no fundo de cena. Seguindo uma “métrica” que só ele parece conhecer, traduz partes do discurso dos bailarinos na sua respetiva língua — português, inglês, castelhano e francês (criando ainda mais ruído?).


A peça parece desenvolver-se sobre o caráter binário do ruído, a sua natureza dual e dicotómica, entre compreensão e incompreensão, entre tudo ou nada. Será que este “ruído” nasce da tensão que se desenvolve na subjetivação dos movimentos dos performers e as suas intenções pelo olhar de cada um dos espetadores?


Isto é, será o “ruído” fruto de movimentos cuja intenção não compreendemos, do som que não apreendemos, da informação que não temos os mecanismos para interpretar, daquilo para o qual não temos tradução?

Em parte, sim. Os coreógrafos parecem propositadamente querer explorar a relação entre a expectativa e a interpretação do público e a dança que acontece no palco, e o ruído que pode nascer desta relação. O próprio processo que levou à criação desta peça permite-nos observar esta questão.


“Ruído”, nome da peça, é um conceito tão difuso quanto prevalente na linguagem e no conhecimento humano. Foi isso que Sofia Dias e Vítor Roriz vieram explorar no seguimento da residência artística que têm vindo a desenvolver, entre 2023 e 2024, no projeto Bridges to the Unknown da Fundação Champalimaud, em diálogo com os investigadores do Champalimaud Center for the Unknown.


Segundo Sofia Dias, ruído é “um conceito que, no campo da neurociência, adquiriu uma aura de mistério pela sua omnipresença no funcionamento neural e também pela dificuldade em ser explicado. O ruído tanto representa o nada, o irrelevante, o que perturba e polui, como também o caudal de informação significativa que (ainda) não conseguimos apreender”.


Contudo, para mim, é precisamente aqui, neste “informação significativa que ainda não conseguimos apreender” que se encontra a proposição que faz com que esta peça se desenvolva para lá da interseção entre a absoluta compreensão e a total incompreensão, que ultrapasse a natureza binária do “ruído” para acolher todas as possibilidades que nele residem.


O “ruído” passa então a representar muito mais do que apenas um fluxo de informação sonora incomodativo e perturbador do silêncio. Pois nele, neste misterioso e potencial espaço, poderá residir uma linguagem que não conseguimos decifrar, um futuro desconhecido e novos imaginários.


É precisamente no âmbito da linguagem que esta peça me remeteu para o filme Arrival (2016), do realizador canadiano Denis Villeneuve. No cerne do conceito linguístico desenvolvido neste filme está a Hipótese de Sapir-Whorf, também conhecida como tese do relativismo linguístico, que estipula que as comunidades moldam a sua perceção do mundo através de categorias gramaticais e semânticas. Isto é, a linguagem não é um mero veículo da nossa mundividência, é também uma ferramenta de construção do nosso universo. Esta é a premissa que alimenta o enredo do filme, no qual uma linguista procura compreender uma cultura alienígena.


O paralelo que proponho é essencialmente o mesmo. No filme, o “ruído” que a linguista Louise Banks (Amy Adams) experiencia no encontro com estes seres extraterrestres deixa de o ser quando esta passa a ser capaz de os compreender, e, quando os consegue compreender, consegue com eles desenvolver laços de emoção e empatia. Denis Villeneuve talvez nos tenha apresentado uma representação visual e concreta do conceito de “ruído”, que, de uma forma mais poética e abstrata, Sofia Dias e Vítor Roriz, recorrendo aos mecanismos da dança e da performance, nos propõem nesta peça.


Este “Ruído” consegue precisamente isso, estender-se para lá da poluição e do caos, emanando, ao longo de todo o espetáculo, uma energia profundamente empática. Seja pela coreografia de movimentos despidos, sem aparentes floreados e virtuosismos, pela evidente disponibilidade emocional de cada um dos performers ou pela estética cenográfica, a empatia (e até alguma melancolia) desta performance é incontornável.


Esta energia materializa-se em palco num momento particular. Com os olhos postos na plateia, os performers olham nos olhos de um espetador imaginado (?), que com uma profunda delicadeza convidam a ultrapassar as suas apreensões, talvez o “ruído” que o inquieta, e a juntar-se a estes em palco. No palco, este “espetador/performer em potência” passa a ocupar o seu espaço e a exprimir-se através de uma coreografia invisível, num momento terno e profundamente empático.


Vão ver, vale a pena.


“Ruído” teve estreia no dia 4 de outubro, no Cine-Teatro de Torres Vedras, passou pela Culturgest, em Lisboa, entre 10 e 12 de outubro, e no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, no passado dia 26 de outubro. Em 2025, a peça estará no Teatro Louletano, em Loulé, com data a definir, e esperemos que haja outros palcos a acolher esta muito interessante proposta. Fotografia: Bruno Simão

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