Crónica de Guilherme Ludovice
Publicado em março deste ano, a autobiografia de Woody Allen “Apropos of Nothing” fala-nos sobre um comediante e cineasta com um royal-flush na mão que, muito provavelmente, não vai a tempo de o jogar.
É natural identificar alguns temas dominantes que marcam presença assídua nos filmes de Woody Allen: relações pouco saudáveis, personagens neuróticas, magia, adultério, filosofia, gangsters e jazz. Apesar de dizer reiteradamente que os seus filmes não são autobiográficos, ao longo do livro é fácil ir percebendo a presença destes mesmos temas na sua vida e o quão próximas são as personagens às pessoas com quem se foi cruzando. Neste sentido, “Apropos of Nothing” serve como um bom manual para os filmes de Woody Allen, que, aos 84 anos, também aproveita para reavaliar a sua obra: os filmes que pensa serem bons, os que pensa que falharam e aqueles que são incompreendidos (de destacar a defesa a “A Rosa Púrpura do Cairo”). Quem procurar na autobiografia alguns detalhes sobre o processo criativo não os vai encontrar, até porque, nas palavras do próprio, não tem rigorosamente nada a ensinar.
O que acaba por ocupar uma grande parte do livro (apesar de desejar que as pessoas não o comprem por essa razão) é o divórcio com Mia Farrow, a relação com Soon-Yi e o ressurgimento das alegações de abuso relativamente a Dylan Farrow.
Após o inevitável fim de relação com Mia Farrow, Woody Allen foi acusado de ter abusado de Dylan Farrow, a sua filha adotiva de sete anos. As acusações de 1992 levaram a que Woody Allen fosse investigado a fundo por duas vezes. Nenhuma investigação encontrou qualquer indício de abuso. Em 2014, Dylan Farrow falou publicamente pela primeira vez sobre o assunto numa carta ao New York Times em que expunha o sofrimento que passou pelo facto de Woody Allen ter saído incólume de toda esta situação que ainda a atormenta.
“Apropos of Nothing” conta o lado de Woody Allen de toda esta situação em que alega ser inocente. Mais que o relato do próprio, o argumento das duas investigações, por duas entidades independentes, serve para manter a presunção de inocência do cineasta quanto a este caso. O que resta é o facto de Woody Allen ter começado uma relação com Soon-Yi, filha adotiva de Mia Farrow, quando esta tinha dezanove anos.
Neste momento Woody Allen tem 84 anos e confessa-nos que saber que está inocente, quando o resto do mundo diz que não, é como ter um royal-flush num jogo de poker. Está à espera que as cartas virem para mostrar o jogo e arrecadar as fichas, mas infelizmente não acredita que as cartas vão virar a tempo.
Existe uma certa exigência de puritanismo em relação às figuras públicas. Exige-se que sejam heróis louváveis em todas as vertentes, quando estão impedidas de o serem pelo simples facto de serem pessoas. As pessoas (grupo onde se inclui os artistas) são capazes de coisas inacreditavelmente boas e assustadoramente más. Se ignorarmos o todo, catalogando como bom e mau, perdemos o fenómeno da complexidade que é cada pessoa. A Nina Simone batia na filha, o Picasso maltratava as mulheres e o Caravaggio matou um homem. É permitido ser-se utilitarista na maneira como admiramos as pessoas. Posso admirar e usar como exemplo a maneira como Woody Allen escreve e como faz rir sem assinar um contrato de adesão de admiração à pessoa por inteiro. Da mesma maneira que se pode repudiar certos comportamentos sem fazer um exercício de ódio a tudo o que pessoa fez e a quem a apoia.
Se, pelo relato do próprio, acho bem a maneira como o Woody Allen lida com mulheres e com relações? Não. Se gosto dos filmes de Woody Allen? De uns gosto mesmo muito, de outros nem por isso. Se Woody Allen é boa pessoa? Não sei, não o conheço.
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