Gostaria de realçar a importância de dissociar, por muito trabalho que dê, uma cultura secular de um atual governo comunista que age contra os direitos humanos e que usa, sem misericórdia, a arte e a literatura como meios para atingir um fim, criando uma ligação indesejada mas duradoura entre o encarnado da cultura chinesa e o vermelho do comunismo.
Crónica Aspas Aspas de Teresa Louro
Estudante UWC em Changshu, China
Após a publicação da minha última crónica, fui “alvo” de críticas construtivas que despoletaram discussões saudáveis sobre a mensagem subjacente ao meu elogio à cultura chinesa. Percebi que, infelizmente, é impossível escrever uma crónica que vise realçar um aspeto positivo desta cultura secular sem cair no erro de soar a propaganda para o Partido Comunista Chinês. Decidi então aliar a minha experiência pessoal , algumas horas de pesquisa e o testemunho de alguns colegas chineses para expor a sensação de vigilância constante, a opressão individual e a falta de liberdade de expressão num estado totalitário.
Estado de Vigilância Constante
Não ter acesso a redes sociais ocidentais é apenas a ponta de um complicado icebergue tecnológico que garante ao governo chinês controlo sobre 98% de tudo o que é publicado e acessível à população chinesa. E como é que eles garantem esta eficácia? Usando uma única rede social e tornando-a necessária o suficiente para que todos os chineses sejam forçados a instalá-la. Refiro-me ao Wechat (微信), uma rede social fascinante que te permite comunicar com os teus amigos, publicar wechat moments (semelhante às stories do Instagram) e, talvez o aspeto mais importante, ligar a tua conta Wechat à conta bancária. Ou seja, podes pagar qualquer compra com algo tão simples como um scan de um código QR. Extremamente conveniente. Tão conveniente que até quando escalei uma montanha, no meio de nenhures, no topo havia um casebre que vendia uns legumes cozidos e para pagar os ditos vegetais era preciso usares Wechat. Esta aplicação é publicitada como sendo privada: só te tornas amigo de alguém se fizeres scan do QR dessa pessoa. O que é irónico é que todas estas medidas de privacidade não te protegem da vigilância constante do governo chinês.
Passados apenas dois meses da minha chegada à China, estava a usar o Wechat para falar com os meus pais, em português, e comentei apenas que gostava de visitar o Tibete. Ora, nem 48 horas depois a minha conta de Wechat foi desactivada por “atividade suspeita”. Coincidência? Não me parece.
E o meu caso não é um evento isolado, a própria administração da minha escola, supostamente liberal, chamava-nos à atenção constantemente por culpa daquilo que publicávamos nas redes sociais. Este caso tornou-se extremo depois de um aluno ter publicado no dito Wechat que a escola era “liberal e tolerante”. Ficou logo o caldo entornado e os avisos passaram a ações de censura que visavam controlar aquilo que escrevíamos sobre a escola na tal rede social.
Dalai Lama, o Vilão
Estava sentada no gabinete da minha conselheira. Recém-chegada à China, ela tinha convocado uma reunião para nos conhecermos melhor. Tenho dificuldade em olhar só para um ponto enquanto falo, por isso fui dando uma vista de olhos pela sala. Para meu espanto, a decorar cada uma das paredes, havia citações do Dalai Lama impressas em cartolinas A2.
Decidi, meio envergonhada, avisá-la:
“Elena, não podes ter isto exposto aqui. O comité comunista da escola vai ver.”
“ E depois?”
Tive então de lhe contar que, para os chineses, o Dalai Lama era a personificação de tudo o que é vil e imoral. Tive de lhe contar que desde pequenos sofrem uma lavagem cerebral e que são programados para odiar o Dalai Lama com toda a sua força. Tive também de lhe contar que não sabem nada da história do Tibete, apenas que o líder é uma ameaça ao governo. E isso chega.
Não acreditam no carácter pacifista da civilização tibetana. Não sabem que em 1950 uma invasão armada e uma batalha desigual obrigou o Dalai Lama e o governo tibetano a assinar, sob coação, o acordo de dezassete pontos que concedia ao Partido Comunista Chinês soberania sobre o Tibete. E muito menos sabem, ou nem querem saber, que o governo chinês perseguiu e matou apoiantes e seguidores do Dalai Lama, e que, por esta razão, em 1959, foram obrigados, com o seu líder, a procurar exílio na Índia.
Por tudo isto e muito mais, Tashi, o meu colega Tibetano, não pode levar para a escola uma bandeira que represente a sua região, visto que são ilegais. Ele não pode falar da sua religião nem da falta de liberdade de expressão da qual sofre. Está também proibido de se referir ao Tibete como uma região autónoma. A censura não acaba.
Depois desta conversa, e talvez em gesto de rebelião, a minha conselheira simplesmente dobrou a parte da folha que expunha o nome do autor das citações. Uns dias depois, contou-me que um dos representantes comunistas da escola tinha lido as ditas folhas e que as tinha elogiado pelo seu conteúdo pacifista. Rimo-nos as duas de um segredo que era só nosso. É como se diz: rir para não chorar.
Uma ditadura “ necessária “ e uma lavagem cerebral “obrigatória”
“Sentes que és oprimida?”
Foi o início de uma discussão com a minha colega de quarto chinesa, Jessie.
“Não, não me sinto oprimida.”
“Mas podes dizer o que quiseres sobre o governo chinês?”
“Posso.”
“Mesmo em público?”
“Ah, isso já não.”
Jessie não se considerava oprimida. Dentro dos limites da sua casa, em conversas cara-a-cara com outras pessoas, a Jessie podia reclamar do governo. Não que isto lhe fosse proveitoso, porque o governo fazia o melhor que podia e ela não tinha nada de mal a apontar.
Perguntei-lhe sobre a ditadura e ela disse que não era bem assim. Eles não eram “oprimidos-oprimidos”, só não podiam dizer tudo o que queriam nas redes sociais. Para além do mais, eles precisavam de um governo mais “rígido”. Era necessário um estado totalitário para controlar 1,3 mil milhões de pessoas. Sem aquele governo não seriam a potência mundial que são. Se se implementasse uma democracia, as coisas ficariam na mesma ou piores. A pobreza nas províncias do Oeste é tão grande e as falhas na educação tão avassaladoras que seria muito fácil comprar os votos a toda essa parte da população. O resto votaria no partido comunista na mesma. Todos os chineses amam o seu país tal como ele está, sem tirar nem pôr. Já para não falar de que um governo autoritário é necessário para manter a paz e a segurança no país. Pensei para mim mesma que este conceito de paz e segurança era subjectivo. Aqueles que pertencem à etnia Han, o maior grupo étnico na China, talvez se sintam seguros. Então e os Tibeto-Burman? E os Uyugurs em Xinjiang? E todos os grupos étnicos de origem turca? Sentir-se-ão seguros e em paz?
Ela respondeu-me que o governo só se preocupa com pessoas que sejam abertamente contra as medidas do estado e com isto acabou a conversa. Percebi que para ela era mais fácil não fazer perguntas. Este é o resultado de anos e anos dentro deste regime autoritário.
Encarnado, Cultura e Propaganda
Hoje em dia é quase impossível dizer algo sobre a China que não seja anti-governo sem soar como pró-governo. No entanto, falar da cultura sem abordar a ditadura é fazer o que estes estados querem: focarmo-nos nas coisas “bonitas” e fechar os olhos a todos os abusos de poder e censura.
Em qualquer ditadura, um dos primeiros passos é a destruição ou apropriação da cultura do país. Muitos estados totalitários limitam-se a censurar indiscriminadamente, mas o PCC utiliza a cultura secular chinesa como meio de propaganda. O que é uma tristeza, visto que a arte chinesa reflecte verdadeiramente a cultura desta civilização muito para além de 70 anos de um estado autoritário.
Como tal, gostaria de realçar a importância de dissociar, por muito trabalho que dê, uma cultura secular de um atual governo comunista que age contra os direitos humanos e que usa, sem misericórdia, a arte e a literatura como meios para atingir um fim, criando uma ligação indesejada mas duradoura entre o encarnado da cultura chinesa e o vermelho do comunismo.
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