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A Sociedade de Massas e o Fracasso dos Movimentos Sociais


Os movimentos sociais nos países capitalistas e em crescimento económico estão tendencialmente predestinados a fracassar. O seu fracasso não se deve à falta de caráter ou entendimento teórico da sociedade por parte dos seus membros, em certos casos. Mas sim devido ao facto de nestes países a classe média não possuir a capacidade de se reunir em massa em redor do propósito de realizar uma profunda mudança política e social


Ensaio de Guilherme Machado

Para o segmento dos leitores Aspas Aspas



Nos últimos dois anos, como consequência avassaladoramente direta das crises multinacionais do sistema económico mundial - que levou a uma diminuição do bem-estar geral dos trabalhadores pobres no mundo ocidental e, mais importante ainda, de uma classe média habituada a padrões de consumo elevados e insustentáveis - somos confrontados com diversas manifestações de revolta civil e popular em diversos países do mundo. No Chile, milhares de cidadãos ocuparam Santiago em revolta contra uma Constituição herdada dos tempos de Regime Militar, enquanto que na França, nos EUA e no Reino Unido, diversos motins e revoltas populares motivadas por aspectos sociais que se fixam nas contradições inerentes do sistema capitalista sucederam-se nos últimos meses. A verdade é que a decadência económica pela qual diversos países europeus, norte-americanos e latino-americanos passaram nos últimos dez a quinze anos aumentou gradualmente as tensões entre as diversas classes e setores da sociedade. De um lado, como referido anteriormente, os trabalhadores saem geralmente mais afetados e frustrados quanto aos seus interesses na vida pública. A inflação das moedas latino-americanas e a política de austeridade da Zona Euro, controlada pelo Banco Central Europeu (e, por isso, pelo sistema financeiro alemão e francês), já para não mencionar a progressiva perda de influência que as grandes corporações norte-americanas e o monopólio industrial e comercial dos EUA se deparam face ao mercado chinês e de economias em desenvolvimento. Todas estas situações levam ao que se pode considerar como um momento de tensão elevada entre a classe média e os trabalhadores.


Na Europa e, especialmente, na União Europeia, revoluções políticas são fenómenos de outras gerações, e a própria queda dos Estados Socialistas no Leste Europeu são simples consequências do crescimento e expansão dos mercados capitalistas internacionais para estes países - interna e externamente. Na América Latina, países como o Brasil, a Argentina e o Chile abandonaram os seus regimes militares sob a égide da Escola de Chicago e dos neoliberais de Milton Friedman, entrando num período de relativa prosperidade económica aliada a uma melhoria das condições de vida por entre a classe trabalhadora, erguendo uma classe média frágil mas proeminente. Devido a isto, a população destes países está subordinada a um sistema político burocratizado, sujeito aos interesses económicos de grandes empresas e do setor financeiro, enquanto que culturalmente é uma classe média tendencialmente liberal e consumista, que estabelece o comportamento e atitude da sociedade civil perante a vida económica, social e política. Esta atitude de classe média generaliza-se pela sociedade devido às tendências de consumo confortável e de certa prosperidade no seio do sistema económico. Um operário metalúrgico que compõe toda uma classe de operários igualmente insatisfeitos com as suas condições revolta-se muito mais facilmente do que um engenheiro informático assalariado, mas que, não obstante, é capaz de ir de férias e considera as atuais democracias liberais como um sistema representativo. A sociedade civil no mundo ocidental perdeu a sua capacidade de levar a cabo um verdadeiro movimento de massas do calibre que foi observado na Europa do século XIX - não só desapareceram as incoerências diretas e opressões diárias de ser um trabalhador assalariado (devido ao crescimento do trabalho intelectual e de alta formação face a uma expansão da exploração sistemática de trabalhadores pobres, que em certos casos se desenvolve dentro do mesmo país onde a classe média cresce continuamente - como o Brasil), como não existe sequer uma cultura de reivindicação generalizada e de inércia de massas para mudar o poder político. Não existe sequer nos meios de comunicação e espaços de debate da vida pública um enquadramento teórico da situação dos trabalhadores no sistema capitalista que possua força e poder de massas (como o marxismo no século XIX). O cidadão de classe média; o cidadão inserido numa sociedade de massas anónimas e apáticas deixa-se levar pelas ilusões de uma democracia liberal e da economia internacional, e não concebe quaisquer soluções para a sua decadência individual e comunitária que não se fixem por mudanças internas do sistema vigente.


A crise, a falência dos estados e o fracasso da economia neoliberal, e o desastre ambiental que vivemos, assim como todas as tensões sociais e geopolíticas do mundo - desde a crise de refugiados até a guerras civis no continente africano - são meros sintomas de um sistema capitalista expansivo, extrativista, acumulador e destrutivo das comunidades e do meio ambiente. A crise económica e humanitária não é culpa de um único indivíduo ou de um único governo ou partido com intenções maquiavélicas, mas sim o resultado de um sistema económico e de relações de produção que são exploratórias, injustas e destrutivas para grande parte da população mundial. A partir do momento em que é compreendido que a situação atual não é alterada nem por uma mudança de partido ou de ministério, nem por reformas internas, é que é possível abraçar por completo uma eficaz e completa solução da crise que experienciamos - a literal e não irónica revolução; uma mudança de sistema.


É com este estado das relações entre classes, o Estado e a economia, que vemos o despertar de autênticos momentos de revolta civil. As imagens que vemos em Seattle, Portland e Minneapolis são do nível que o país não experienciava de forma tão sistemática e destrutiva desde a Guerra do Vietname. E as manifestações no Chile, devido ao facto de nem sequer se fixarem em tensões sociais como produto direto das relações económicas injustas, mas sim no facto de o sistema de pensões do país estar falido, deram sinais de que existia a possibilidade de, não uma reforma, mas sim a transformação política do país. Meses depois, confirma-se a consequência direta de um movimento social desperto dentro do seio da classe média - fracassou completamente, em todos os sítios, mas com níveis de fracasso diferentes. Os chilenos lograram num plebiscito de uma nova Constituição que substitua a Constituição de Pinochet, mas o poder não está nas mãos da população, e sim nas do incongruente e desesperado Sebastián Piñera. Nos EUA, a violência policial continua a ser crónica e endémica a um país cujas instituições económicas beneficiaram historicamente da exploração sistemática de minorias, e em especial os afro-americanos. A conclusão que os protestos nos EUA atingiram é tão ridícula (mesmo que no momento da escrita deste texto, ainda estejam a acontecer), que a máquina de propaganda de Trump está a ser capaz de utilizar estes protestos como objeto de atração de novos eleitores e cristalização de cisões profundas na sociedade civil dos EUA. É peculiar como tantos manifestantes, tantos atores deste espetáculo melodramático foram incapazes de conceber que violência policial não é “violência”, mas sim ação policial. A polícia é um órgão inerentemente violento, e para cumprir o seu propósito de oprimir, deve ser violenta. Ou seja, não é com reformas policiais que todo o complexo institucional e económico através do qual o racismo estrutural é propagado e utilizado para a exploração dos trabalhadores será soterrado. Reformas policiais significam literalmente pedir com simpatia à Polícia que continue a ser violenta, mas que o faça menos vezes ou de formas menos tortuosas (ou então fora das câmaras de iPhones).


Os movimentos sociais nos países capitalistas e em crescimento económico estão tendencialmente predestinados a fracassar. O seu fracasso não se deve à falta de caráter ou entendimento teórico da sociedade por parte dos seus membros, em certos casos. Mas sim devido ao facto de nestes países a classe média não possuir a capacidade de se reunir em massa em redor do propósito de realizar uma profunda mudança política e social. No vernáculo do cidadão comum, a ligeira possibilidade do seu governo ser deposto assemelha-se a uma loucura, ou pior ainda, uma espécie de utopia inalcançável. A experiência que temos em sociedades nas quais os meios de comunicação e cultura estão extremamente massificados é em essência, esquizofrénica. Não existe qualquer tipo de agenda política com poder que conceba propostas fora da estrutura do Estado e da economia vigente. As ideias políticas e as formas culturais assumem uma enorme vacuidade pelo bombardeamento constante de debates infrutíferos e nulidades parlamentares e legislativas que dão uma sensação de representatividade, quando ninguém está verdadeiramente representado numa democracia liberal. Qualquer empresa e qualquer interesse económico que se baseie no enriquecimento de uma minoria de capitalistas à custa da exploração sistemática dos países pobres e até da destruição da classe média terá uma representação muito maior para o Estado do que qualquer indivíduo trabalhador.


A classe média e a sua hegemonia na sociedade levam a que estes estabeleçam padrões de atitude e reação perante as contradições internas para toda a sociedade, enquanto que é o seu consumo e decadência que são utilizados como ferramentas de manutenção da atual ordem insustentável em que vivemos. Não serão estes movimentos sociais, que saem às ruas e até são capazes de causar a anarquia contra pequenas lojas e alguma propriedade, que irão terminar a atual crise climática, a crise de refugiados, o aumento da pobreza e o piorio das condições materiais dos trabalhadores. Não serão capazes pois o seu movimento é desorganizado e composto por massas incólumes, apáticas e descentralizadas, incapazes de tomar conta do poder político e construir formas de poder político representativo e popular. Enquanto a reação que a sociedade tiver contra as injustiças internas do sistema capitalista, como o Black Lives Matter, se pautar por reformas internas do sistema político e não possuírem agendas concretas e organizadas sobre como tomar o poder para as massas, estaremos condenados a um estado de permanente colapso das instituições e setores da sociedade, sem qualquer mudança radical e verdadeira.


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