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A vida depois da morte na democracia cristã

Dois meses depois das eleições legislativas e de, pela primeira vez desde a sua fundação, não ter conseguido eleger deputados, o CDS-PP teve o seu congresso nacional e elegeu Nuno Melo como novo líder.

de Vasco Castro Pereira




No meio disto tudo, há que dar mérito ao partido por uma conquista nos últimos dois meses: após anos com populismo e uma coisa não muito bem definida ideologicamente com Manuel Monteiro e Paulo Portas, com a candidatura de Cristas a líder da oposição que morreu antes de nascer e com a gritaria de Rodrigues dos Santos, voltaram a discutir-se assuntos centrais para a democracia cristã. Mais concretamente, discutiu-se o sentido da vida do partido, se haverá alguma forma de vida depois da morte política e se as próximas lideranças serão uma espécie de cuidados paliativos ou, se ao invés disso, Chicão eutanasiou os democratas cristãos.



Não vale a pena continuar a disfarçar, seja por uma crença cega em milagres da Nossa Senhora seja por um sentimento religioso de pena: o CDS-PP definhou. Não sei muito bem se está morto ou se é apenas um vegetal no qual Abel Matos Santos procurará atribuir um sentido da vida e Isabel Galriça Neto promoverá cuidados paliativos, mas é um ser que se arrasta. Os dois congressos anteriores ainda deram alguns sinais de otimismo, mas em ambos os casos a razão das eleições sobrepôs-se à crença e à alma.



Primeiro, foi com Assunção Cristas a ser eleita e, embalada pelo segundo lugar nas Autárquicas de Lisboa, com a fé numa liderança do espaço da direita, mas acabou com 4% nas urnas e a perder 13 dos 18 deputados. Após essas eleições, houve a disputa pela sua sucessão, com debates acesos, disputas internas, aplausos e vaias e, pela primeira vez, um vislumbre da discussão sobre o sentido da vida partidária. Partido Popular? Democracia Cristã? Centrismo? Adiante… sobressaiu Francisco Rodrigues dos Santos, antigo líder da Juventude Popular, que prometeu trazer o CDS de volta para o espaço da direita social e da democracia cristã, mas o mais próximo que conseguiu disso foi pôr o pessoal a falar de morte política e de uma eventual ressurreição.



Neste último congresso, nem isso. E nem a massiva presença da Comunicação Social, desproporcional em comparação com a cobertura aos congressos/reuniões nacionais de partidos como Iniciativa Liberal, PAN ou Livre, conseguiu disfarçar. Foi um congresso mortiço, de um partido ao qual só falta desligar a máquina do suporte de vida (isto se não for sacrilégio, sobretudo nesta altura do ano) ou pelo qual só resta pedir um milagre no mês de Maria que está aí a chegar.



Como somos um país bastante católico, e também porque estamos em época de Páscoa, tem havido uma clara insistência na segunda opção. Por outras palavras, temos discutido hipóteses de ressurreição do CDS, com Nuno Melo a ser uma espécie de fénix. Confesso que por momentos a imagem tem a sua graça, mas duvido que, para um dos deputados menos assíduos do Parlamento Europeu, dê para voar grande coisa. E, sobretudo, duvido que essas hipóteses sejam plausíveis.



Diz-se que o CDS-PP tem de optar entre focar-se no “conservadorismo” (prefiro o termo reacionarismo) ou focar-se no liberalismo. Se quiser ser um partido radicalmente reacionário e discutir com ainda mais ênfase questões fraturantes como a comunidade LGBT+, o passado colonial português ou a disciplina de cidadania, juntando-lhes uma imigração ou um aborto aqui e ali, terá esse caminho barrado pelo Chega. A esperança, para muitos que defendem essa tese, está no facto de o Chega se resumir a pouco mais do que André Ventura e, por isso, dos outros 11 deputados serem tão maus que matarão a credibilidade do partido. No entanto, está a escapar algo a essas pessoas: acreditam mesmo que o eleitorado que se foca nos Mercedes à porta de casa dos ciganos enquanto grande preocupação nacional quer uma reencarnação do Adriano Moreira? Acreditam mesmo que esse eleitorado prefere conservadores eloquentes a um Pedro Pinto a falar sobre rendimento mínimo e “vergonha!!!”?



Entretanto, se se preferirem focar nas questões económicas, como a carga fiscal ou um Estado asfixiante, não só não se vão distanciar muito da Iniciativa Liberal como tiveram o azar da IL ter jogado por antecipação (eventualmente até por acidente, não tenho a certeza), adotando posições não totalmente progressistas e até consensuais entre conservadores e reacionários no que concerne aos costumes. Se quiserem ir jogando de forma errática nos dois campos, continuarão a ser ofuscados pelo PSD.


Há, no entanto, uma outra via para a ressurreição, segundo os crentes: o verdadeiro regresso às origens, ou seja, à Democracia Cristã. E aqui não me refiro àquele reacionarismo travestido de cristianismo, mas a uma doutrina social focada no assistencialismo aos mais carenciados e em munir as instituições de solidariedade social para esse fim, ao mesmo tempo que defende uma visão mais conservadora e menos progressista nos costumes e não ataca a economia de mercado. É uma ideia interessante e tentadora, para além de trazer uma certa nostalgia, mas há vários motivos que me levam a crer que essa opção conduziria também a um inevitável fim.


O principal motivo é inerente à democracia cristã a um nível global. A Democracia Cristã é uma ideologia que foi fundamental na construção e solidificação da democracia nas suas formas mais avançadas, mas cujo prazo de validade poderá estar em vias de ser ultrapassado.


Embora tenhamos de ter em conta que Portugal é dos países 1) mais católicos e 2) com uma das mentalidades mais conservadoras da Europa (em termos de mindset, não tanto de costumes), a evolução geral da sociedade ocidental tem sido no sentido da laicização e de menos crença nos valores católicos, na fé cristã e na doutrina social da Igreja. Os nichos que registam uma evolução interessante da Fé são essencialmente cultos evangélicos radicais que em pouco ou nada têm que ver com a doutrina social da Democracia Cristã.



Para além disto, sente-se cada vez mais uma evolução da sociedade civil no sentido do conservadorismo para o inconformismo ou até teses mais revolucionárias, o que tem levado o eleitorado mais jovem a procurar soluções menos tradicionais e mais radicais até à direita, e também no sentido do coletivismo para o culto da liberdade individual. E nada espelha melhor isto do que os resultados atuais da Democracia Cristã na Europa.



Embora o Partido Popular Europeu tenha o maior grupo parlamentar do Parlamento Europeu, uma parte significativa dos seus partidos não é democrata cristã. Os únicos partidos democratas cristãos com relevância na Europa são a CDU alemã, o PP espanhol e o OVP austríaco, sendo que não só têm perdido força eleitoral como estão também cada vez mais afastados da matriz democrata cristã e a aproximar-se do neoliberalismo, particularmente os dois últimos. Isto se, obviamente, excluirmos democracias iliberais que advogam a Democracia Cristã, como é o caso da Polónia. Nos Países Baixos, tudo indica que o CDA, outrora um partido extremamente relevante, irá perder metade do seu grupo parlamentar. Nos Países Nórdicos, os democratas cristãos suecos estagnaram. E na Itália, o berço da Democracia Cristã, os representantes da ideologia… desapareceram.


O caso italiano é interessante, tem alguns paralelismos com algo que também se passa em Portugal e é um bom ponto de partida para o segundo grande motivo que acho importante destacar. O que defende a Democracia Cristã? Defende a assistência aos mais desfavorecidos, quer por instituições de segurança social quer por algumas medidas do Estado, mas nunca colocando em causa a economia de mercado nem o primado do indivíduo. Ora, isto não vos lembra nada? Quando pensam num partido que defende algumas medidas de ação social sem colocar em causa os interesses do grande capital, e que tem defendido e financiado as IPSS, e nunca tomando posições radicalmente progressistas nos costumes, quem vos vem logo à cabeça? Para vos dar uma ajuda: o mesmo partido pelo qual Basílio Horta se candidatou à Câmara de Sintra, ou que liderou um governo que contava com Diogo Freitas do Amaral como ministro, para além dos vários ex-militantes do MES… nada? Bom, se pensarmos bem, o que é que separa realmente o PS, e uma boa parte do centro-esquerda pós terceira via, do cerne da ideologia democrata cristã?



No caso italiano, desde a dissolução do partido democrata cristão que é o Partito Democratico, parceiro do PS no Partido Socialista Europeu, a advogar a Democracia Cristã de forma clara. Num cenário em que o partido do espaço do centro-esquerda está mais próximo do centro do que da esquerda, aquilo que são os valores primordiais da doutrina social da Igreja acaba por encontrar aí o seu espaço. Para quem se sente mais à direita neste espaço, ou menos progressista do que o centro-esquerda nos costumes, os partidos popularistas e liberais-conservadores como o PSD continuam a representar um espaço no centro-direita com uma economia mais liberalizada mas socialmente responsável.


Por outras palavras, e por mais triste que isto seja, por estarmos a falar de um partido fundador da democracia portuguesa, os debates cristãos que restam ao CDS-PP são o da ética por trás de uma eventual decisão de ligar a máquina do suporte de vida, o dos limites éticos à eutanásia ou o de uma eventual vida depois da morte. Neste caso concreto, a crença em milagres transcende até o mais puro catolicismo. Boa Páscoa a todos.

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