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Aceitemos a realidade: A Europa ficou refém do Fim da História

Atualizado: 15 de mai. de 2021

A União Europeia vive uma dupla inquietação: enquanto tenta avançar para uma Europa mais justa e social e procura liderar todas as transições do séc. XXI, quer, paralelamente, continuar a competir de igual para igual com as superpotências. Superpotências essas, que como a China e a Índia, mas também os EUA (que nos últimos anos evidenciaram o que estava à vista de todos: as suas enormes deficiências sociais), têm preocupações bastante diferentes das preocupações europeia.

Texto de Miguel Pereira Dâmaso

Estudante de Ciência Politica e Relações Internacionais, UCP


Num fim de semana marcado pela Cimeira Social da UE, pela Reunião de Líderes UE-Índia e pela Conferência Sobre o Futuro da Europa, ficou mais uma vez evidente o fosso abismal entre a civilização europeia e o resto do mundo.


No espaço de três dias, a União Europeia efetivou dois objetivos há muito delineados: colocar a dimensão social no centro do debate político, com os Chefes de Estado europeus a assumirem o “compromisso de trabalhar por uma Europa Social” e reiterar a sua nova ambição geoestratégica, reatando as negociações de um Acordo de Comércio e Investimento com a Índia, paradas desde 2013.


Apelidada por muitos como a “região do séc. XXI”, a área geográfica do indo-pacifico é a “discoteca do momento” e a União Europeia perdeu recentemente o seu RP – o Reino Unido – vendo-se obrigada a correr atrás do prejuízo, para não ficar de fora de um espaço que será fulcral nas próximas décadas. Brincadeiras à parte, a Europa percebeu que se não diversificasse a sua rede de contactos no continente asiático, em breve estaria irreversivelmente dependente da China, a quem recentemente voltou as costas. Sob este cenário, Bruxelas viu na Índia um aliado de peso para fazer concorrência a Pequim no contexto asiático, mas também como uma forma de reforçar a sua própria posição no sistema internacional.


Todavia, as deficiências apontadas à China, quando esta passou de “parceiro de negócios” a “rival sistémico”, poderão muito bem ser as objeções apontadas à Índia daqui a uns anos, quando a febre do reencontro entre “as duas maiores democracias do mundo” (expressão frequentemente utilizada ao longo das últimas semanas) passar. Desde a subida de Narendra Modi ao poder que temos assistido a inúmeras violações dos valores que a União Europeia tão veemente defende, desde a intimidação de jornalistas, até à crescente perseguição da comunidade muçulmana, passando pela reversão da autonomia da província de Caxemira e culminando na gestão miserável da pandemia. Por muito que os europeus se foquem nas virtudes históricas do regime indiano, mais tarde ou mais cedo, as atrocidades que Modi tem praticado baterão à porta da Europa.


Nem todos andam “desatentos” ao que se passa em Nova Deli – já este ano, no seu relatório anual sobre direitos e liberdade políticas globais, a Freedom House, rebaixou a Índia de “Democracia” a “Democracia Parcial” e o instituto de pesquisa sueco, V-Dem Institute, apelidou o regime indiano de “autocracia eleitoral”.


A resposta a estes estudos fez-se ouvir pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros indiano, S. Jaishankar, que acusou o ocidente de “hipocrisia” – "So they invent their rules, their parameters, they pass their judgements and then make out as though this is some kind of global exercise".


E aceitemos a realidade, Jaishankar não está longe da verdade. Perdoem-me a apropriação do termo, e não querendo recuperar a teoria de Francis Fukuyama (que a própria historia se encarregou de desmentir), mas a Europa deu um salto para o “fim da história”, permanecendo refém de tudo o que acontece no “mundo histórico”. E isto ficou claro no passado fim de semana: o principal objetivo da Cimeira UE-Índia era o relançamento das relações comerciais entre Bruxelas e Nova Deli – algo que ficou bem encaminhado – mas outros temas estiveram em cima da mesa – alterações climáticas, respeito pelos direitos humanos, valores democráticos – todos eles postos de lado, pois a “maior democracia do mundo” não está preparada para assumir compromissos fora do campo económico.


Em contrapartida, no dia anterior, os 27 Estados-Membros da UE assumiram o compromisso de trabalhar por uma Europa Social, definindo uma série de ambiciosas metas quantitativas, a ser alcançadas até 2030.


A União Europeia vive assim, uma dupla inquietação: enquanto tenta avançar para uma Europa mais justa e social e procura liderar todas as transições do séc. XXI, quer, paralelamente, continuar a competir de igual para igual com as superpotências. Superpotências essas, que como a China e a Índia, mas também os EUA (que nos últimos anos evidenciaram o que estava à vista de todos: as suas enormes deficiências sociais), têm preocupações bastante diferentes das preocupações da União Europeia.


Para onde quer que olhe, a Europa encontrará visões diferentes, ideais diferentes, valores diferentes, pois dá-se ao luxo de se preocupar com certas questões que outras civilizações se recusam ou não têm capacidade para o fazer.


Sem querer colocá-lo num tom maniqueísta, a União Europeia, como um todo, terá de decidir se realmente se quer afirmar como uma superpotência, pondo de lado o espírito messiânico que a persegue desde o pan-europeísmo, como em parte fizeram os EUA, ou se quer tornar-se numa Ilha da Utopia, situando-se, tal como no clássico de Thomas Moore, entre a Eu-topia (terra da perfeição ético-política) e a Ou-topia (o não lugar), caso contrário, temo que continuar a tentar “agradar a gregos e troianos” só servirá para desgastá-la ainda mais.


Seja qual for o caminho escolhido, manda a prudência e o bom senso que se siga “(...) uma abordagem que respeite tanto a multiplicidade da condição humana como a intrínseca aspiração de liberdade. Neste sentido, a ordem tem de ser cultivada, não pode ser imposta”, como aconselhou Henry Kissinger.

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