Numa situação excepcional de emergência, é preciso eliminar burocracias e dar uma oportunidade a estas pessoas de se reerguerem. Os comerciantes do Mercado da Ribeira e outros trabalhadores têm os dias contados se não forem ajudados já.
Crónica de António Vaz Pato
Estudante de Biologia, FCUL
Vivo em Lisboa desde que me lembro ser gente. As suas palpitações são as minhas e, portanto, tenho acompanhado com apreensão a minha cidade neste mergulho no silêncio e na incerteza desde Março do ano passado. A pandemia pôs a nu uma cidade mascarada de turismo, onde a sua essência parecia ser só matéria de atração e não de comunidade. Agora, sem estrangeiros cirandando, principalmente na baixa e na zona ribeirinha, vemos a cidade tal como ela é, feita de quem vive e trabalha nela, dos trabalhadores essenciais muitas vezes esquecidos e que põem o coração da cidade a bater. E para mim este é um ponto muito importante: quem trabalha em Lisboa e tem o acaso de dormir fora do perímetro do concelho é tão lisbonense como eu, que nasci e vivi os meus 21 anos em Alvalade. É talvez uma questão de espírito, uma definição com pouca importância legal, mas para mim é fundamental. E para os trabalhadores do mercado da Ribeira (MdR) também. Já vamos ver porquê.
Este mercado é um dos dois mercados da cidade de Lisboa que continua sob tutela da Câmara Municipal de Lisboa (CML). O outro é o mercado de Campo de Ourique que, por estar inserido num bairro residencial não tem os mesmos problemas que o MdR. Depois de o “mercado” TimeOut ter engolido a ala poente da Ribeira, os merceeiros, peixeiros, talhantes e floristas, entre tantos outros comerciantes, ficaram reduzidos aos corredores e ao pavilhão da ala nascente. Isto pode parecer estranho para quem só conhece a face turística deste espaço, mas o MdR continua a ser um mercado importantíssimo não só para abastecer a pouca população residente da zona da Baixa (os poucos que ainda vão lá e não trocaram a Ribeira por supermercados), mas também, e principalmente, para os muitos restaurantes, os antigos e os novos, que servem nas suas redondezas. Os restaurantes dependem dos produtos frescos e da qualidade do mercado da Ribeiro e os vendedores, por seu turno, dependem dos restaurantes para compensar a perda de clientela “bairrista”. Para além disso, os turistas, em período pré-pandemia, também iam dando o seu contributo perante a ausência dos residentes. Com a pandemia, o fecho e a falência de restaurantes e o desaparecimento da galinha dos ovos d’ouro (o turismo), facilmente se adivinha o decréscimo brutal das vendas nas bancas do MdR. Com o primeiro impacto em Março/Abril e nos meses seguintes, a CML agiu (como manda o seu dever), isentando os vendedores do pagamento da renda mensal e abatendo posteriormente o valor para 50% do valor pré-pandemia entre os meses de Setembro e Dezembro. Contudo, e mesmo perante previsões e indicadores que vaticinavam uma ameaça maior no período de Inverno, a coisa deixou-se andar até ao novo confinamento. A necessidade, neste preciso momento, de garantir um apoio sólido e imediato a estes trabalhadores é premente. Neste caso, tal como no caso de inúmeros negócios simbióticos, está em jogo a sobrevivência de actividades que perduram há décadas. Pelo seu valor histórico e social e pela sua importância no seio da comunidade lisbonense, espaços como o MdR deviam ser prioridade na agenda económica da CML.
E é nesta parte que entra a tal questão da distinção entre lisbonenses que vivem dentro da cidade e lisbonenses que apenas trabalham nela (alguns há muitas décadas), que, para mim não existe nem nunca deveria existir ou ter existido. Todavia, para a CML, aparentemente essa distinção é da maior importância legal, pois decide quem recebe apoio de emergência (repito: emergência) e quem fica com os bolsos vazios. De acordo com a CML, a actividade que se propõe a receber apoio financeiro municipal tem de ter obrigatoriamente a sede dentro dos limites do concelho de Lisboa. Para quem acha esta condição natural, fiquem sabendo que exclui à volta de 30 comerciantes com actividade no MdR: aqueles que dormem fora do concelho, mas trabalham há 30 ou 40 anos em Lisboa. Estes comerciantes, a par de outros com actividade na restauração, dependem de Lisboa para o seu rendimento e, com o seu negócio, geram riqueza económica e social para a cidade. O único pormenor no meio disto tudo que os impede de receber ajuda é mesmo o facto de pernoitarem noutro concelho na AML. É uma ideia simples, mas, ao que aparenta, difícil de compreender para os decisores políticos.
Numa situação excepcional de emergência, é preciso eliminar burocracias e dar uma oportunidade a estas pessoas de se reerguerem. Segundo alguns autarcas municipais, é possível fazer a declaração de actividade e transferir a sede para o local de trabalho efectivo. São problemas simples de solucionar e da maior importância para a vida destes comerciantes. Estes trabalhadores têm os dias contados se não forem ajudados já. Fernando Medina tem de começar a pensar seriamente nas incoerências que vão pautando o seu mandato. Nos últimos 4 anos, a CML desenvolveu um plano para resgatar os Mercados de Lisboa e torná-los competitivos face ao crescimento assustador dos supermercados. Foi um plano ambicioso e fundamental porque falamos de espaços que guardam em si uma boa parte da alma desta cidade (não sei se porventura alguém sente a alma de Lisboa dentro de um Pingo Doce, essa ideia, confesso, parece-me bizarra). E agora, quando um dos dois mercados com gestão directa do município grita por ajuda urgente, a CML resolve afundar os vendedores em burocracias insensatas e complicar ainda mais a situação para os mesmos, pondo em causa negócios geracionais. Na política, uma das qualidades que mais admiro é o pragmatismo e no último ano isso tem faltado muito em Lisboa. As ciclovias e as bicicletas podem esperar, primeiro é preciso resgatar as pessoas.
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