Perceber a devoção e zelo dos americanos pelas suas armas implica compreender a sua veneração pela Constituição e demais documentos fundadores. Há uma certa deificação das instituições democráticas e das personalidades que as tornaram possíveis, o que também ajuda a explicar que a defesa da Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos, resumida no “right of the people to keep and bear arms” seja, ela também, a derradeira defesa do sonho americano.
Crónica de Paulo Simões Ramos
Assessor jurídico do Ministro da Defesa Nacional
Armados, com equipamento paramilitar e exibindo orgulhosamente os mais variados símbolos de exaltação ao patriotismo norte-americano, centenas de apoiantes de Donald Trump tomam Washington DC para protestar a cerimónia de posse do Presidente-eleito Joe Biden. Em claro tom de desafio, declaram à comunicação social: “Estamos armados porque deste modo a polícia não nos faz frente; sem armas eles fazem coisas que não deviam fazer”. Do outro lado, 20.000 militares da Guarda Nacional patrulham incessantemente os quarteirões da cidade. Num registo mais leve, a plataforma humorística online 9GAG não descreveria melhor a situação: “America invades America”.
A tensão com as autoridades é notória e conta quem lá vive e trabalha que percorrer as ruas simétricas da capital os transporta para o início da década de 60 do século XIX, na véspera da Guerra Civil Americana que ceifou a vida a cerca de um milhão e meio de americanos do Norte e do Sul. Apesar de não mais ser possível recolher o testemunho de quem viveu essas páginas negras da história dos Estados Unidos da América, ninguém tem dúvidas quanto ao ar que se respira. O clima é de guerra civil.
Cenários como aqueles que vemos nas notícias que nos chegam do outro lado do oceano são absolutamente impensáveis na Europa. Para o comum cidadão europeu, o porte de arma é visto como uma prerrogativa das forças de segurança e militares, e assim deve permanecer: As armas são, afinal, instrumentos de morte, devendo, em regra, permanecer no controlo de profissionais psicológica e funcionalmente aptos ao seu manuseamento. Aqui reside um traço distintivo fundamental entre o contrato social de modelo europeu e o americano: É que este último visa, em última análise, proteger os cidadãos do seu próprio governo. Não será difícil compreender, nas palavras do antigo Juiz-Chefe dos Estados Unidos e conservador republicano Warren E. Burger, a apreensão do povo americano pelo novo “governo-monstro” que lhes havia sido apresentado escassos anos depois da derrota da tirania do Rei George III em terras americanas.
Assim, perceber a devoção e zelo dos americanos pelas suas armas implica compreender a sua veneração pela Constituição e demais documentos fundadores. Há uma certa deificação das instituições democráticas e das personalidades que as tornaram possíveis, o que também ajuda a explicar que a defesa da Segunda Emenda à Constituição dos Estados Unidos, resumida no “right of the people to keep and bear arms” seja, ela também, a derradeira defesa do sonho americano.
A discussão da Segunda Emenda pode dividir-se, em termos muitíssimo simplistas, entre os que defendem tratar-se um direito individual e os que entendem configurar um direito coletivo. De um lado da barricada estão os que retiram do texto constitucional um direito quase irrestrito ao porte de arma, para propósitos de segurança pessoal e proteção da propriedade privada, ao estilo do que decretava a Bill of Rights inglesa. Do outro lado, os que defendem que esse direito apenas poderá ser exercido no quadro de uma “well-regulated militia”. De comum acordo resta apenas a expressão final “shall not be infringed” – terra de todos e de ninguém.
Parecendo que não, até aqui, tudo bem. Não fosse o facto de que, como referia ontem Saul Cornell no The Washington Post, se estar a resvalar perigosamente para um super-direito que aparenta conjugar pacificamente o direito de carregar uma arma em público com o direito de reunião e manifestação. A ideia de um povo em armas, particularmente de uma franja da população tomada por uma onda de nacionalismos bacocos sistematicamente alimentada pela administração Trump, é francamente assustadora para muitos americanos. Para outros tantos, no entanto, é uma afirmação subentendida de poder do povo, uma raiz estruturante da sociedade americana e que dificilmente se arrancará à força sem causar estragos.
Os primeiros tempos do consulado de Biden poderão ser decisivos neste domínio. Mais que nunca, importará que o Presidente-eleito continue os esforços iniciados pelo seu antecessor democrata, sem prejuízo das naturais resistências que encontrará quer do principal lobby das armas de fogo – a National Rifle Association – quer dos legisladores mais conservadores e do Supremo Tribunal, que se tem pronunciado a favor de uma interpretação mais abrangente da Segunda Emenda e que viu chegar uma juíza nomeada por Trump, Amy Coney Barrett, que se afirmou uma paladina das hostes originalistas (como não poderia deixar de ser, não fosse a própria uma protegida do juiz Antonin Scalia). Biden terá pela frente aquele que é o maior desafio à estabilidade interna da democracia norte-americana deste século e a luta por uma legislação das armas de fogo mais prática e eficaz será uma sombra incontornável do seu mandato. Assumi-lo desde o dia zero como uma prioridade, no entanto, será tarefa hercúlea de conjugar com a necessária cicatrização das feridas abertas nos últimos quatro anos. A América bem precisa. O resto do mundo agradece.
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