A pobreza energética é uma consequência palpável do capitalismo e um problema real. A falta de acesso democrático aos recursos energéticos, sentida por milhares de pessoas, é reflexo de uma crescente liberalização e privatização do setor energético, da criação de monopólios neste mercado e do aumento de preços dos combustíveis, o que coloca ainda mais entraves ao alcance necessário a condições de vida digna.
Crónica de Raquel Moreiras
Estudante de Direito, FDUL
No dia 8 de fevereiro, o Electric Reliability Council of Texas (ERCOT), a principal entidade operadora do sistema independente da rede elétrica do Estado do Texas, nos EUA, emitiu um aviso de temperaturas invulgarmente baixas na região, a partir de dia 11 de fevereiro. O aviso, que anunciava uma expectativa de aumento da procura nos serviços que dizem respeito à rede elétrica do Texas e alertava para as condições precárias que adviriam da descida drástica de temperaturas, não estava nem lá perto de prever o estado desastroso em que os texanos se encontrariam apenas uns dias mais tarde.
Milhões de casas sem acesso a eletricidade, milhares de pessoas à mercê das temperaturas negativas invernosas e das consequências deste fenómeno climático extremo, sem acesso à saúde, à alimentação ou à educação, e dezenas de mortos já estavam registados apenas quatro dias depois. No calor do momento, com o caos instalado, apontam-se dedos e atribuem-se culpas por todos os lados da bancada. No entanto, antes de podermos apurar responsabilidades, temos de compreender o fundamental acerca das peculiaridades desta rede.
A rede elétrica do Texas é a única das três principais redes norte-americanas que não é gerida pela Federal Energy Regulatory Commission (FERC). O ERCOT detém o monopólio do fornecimento energético texano, representando quase 90% da capacidade energética do estado. Assim, quando todas as suas fontes de energia falharam, é fácil compreender porque foi o ERCOT, cujas infraestruturas já eram débeis, o primeiro suspeito nesta caça ao culpado. Esta rede é marcada pelo isolamento das restantes, numa tentativa de escapar à legislação federal, e por progressivas privatizações. Sob a alçada de Rick Perry (Governador do Texas até 2015), foram feitas alterações relevantes à sua gestão que, inicialmente, permitiram uma maior competição entre as empresas privadas de fornecimento de eletricidade. Oito anos mais tarde, em 2011, o estado do Texas enfrentou desafios semelhantes aos de hoje, e a recusa de Perry em autorizar reformas que fossem de acordo com a legislação federal garantiu que os mesmos problemas voltariam a ressurgir, anos mais tarde.
Já o atual Governador do Texas, Greg Abbott, foi rápido a juntar-se aos críticos do ERCOT, declarando que este Conselho tinha “falhado” para com a população que deveria servir. Por achar “inaceitável que tantos texanos estivessem sem acesso à eletricidade” num contexto de ameaças iminentes de danos à sua propriedade e à sua vida, Abbot estabeleceu a reforma do ERCOT como item de emergência para a sessão legislativa corrente, a par com a suspensão progressiva de legislação que permita aumentar a resposta pública às necessidades enfrentadas pelas várias comunidades no Texas. Para além disso, tem reunido com direções de organizações de petróleo, gás e refinaria para discutir os apoios estatais a serem atribuídos às indústrias poluentes.
O aumento de emissões de CO2 para lá dos limites estabelecidos pela EPA foi requerido pelo ERCOT e autorizado pelo Departamento de Energia dos EUA, mesmo estando cientes da crise climática que acelera a um ritmo sem precedentes. Já que a vasta maioria do estado do Texas é abastecida a combustíveis fósseis, faz sentido que seja necessário assegurar, num futuro próximo, o seu devido funcionamento. Porém, este seria o momento de repensar a rede elétrica do Texas a longo prazo, bem como a possibilidade de um aumento de fornecimento energético de fontes renováveis, já que proteger os interesses das empresas privadas que querem salvar os combustíveis fósseis a qualquer custo provou não ser a resposta. Agora mais do que nunca é necessário compreender que o grande erro cometido é continuar a permitir a mercantilização de bens e recursos essenciais, como a energia, numa garantia da sua gestão a privados que almejam o máximo de lucro possível, e não assegurar condições de vida dignas a todas as pessoas. O Governador Abbott diz compreender a raiva sentida e expressada pelos cidadãos do Texas, já que “o sistema lhes falhou”. Peca em não referir que “o sistema” não é o ERCOT, é o capitalismo tardio, e faz questão de não referir o seu papel na sua concretização.
Cinco membros da Direção do ERCOT apresentaram já a sua demissão, e Abbott saúda o afastamento, numa posição, no mínimo, peculiar, e, no máximo, deliberadamente enganadora, dado que a entidade que tem jurisdição sobre o ERCOT e regulamenta a sua prestação de serviços é uma agência estatal, a Public Utility Comission do Texas, cujos membros foram nomeados pelo próprio Governador. Este é um detalhe que não escapa aos membros do Energy and Commerce Comittee (ECC), que exigiram a Abbot respostas para o cenário instaurado no Texas. Este Comité denuncia que ou existe uma falha de compreensão das operações fundamentais do ERCOT ou uma tentativa do Governador de desviar a culpa quanto a problemas reais e profundos da infraestrutura, e, nesse contexto, requerem um plano energético que, no final das contas, tenha em vista o aumento da quantidade e intensidade de fenómenos climáticos extremos e de pobreza energética.
Poucos dias depois do apagão inicial, Tim Boyd, (antigo) Mayor de Colorado City, apresentou também a sua demissão, com uma declaração que espelha a sua visão neoliberal daqueles que são o papel e as responsabilidades do governo local: destas não constam “prestar apoio em alturas como esta”. Na mesma publicação, proclama diretamente aos texanos que “ninguém vos deve nada” e deixa Darwin orgulhoso quando afirma que “apenas os fortes irão sobreviver, os fracos irão perecer”. Já o Senador Ted Cruz, num autêntico ato de negligência política, viajou casualmente para Cancún com a sua família, enquanto as viagens eram desencorajadas devido à situação pandémica e milhões dos cidadãos que se comprometeu a servir ficaram para trás, desesperados e desamparados. O Senador declara que o fez por ser um “bom pai”, que leva “muito a sério” a responsabilidade de lutar pelo Texas, e frisa que foi essa consciência que o fez retornar, e claramente não os múltiplos ataques em praça pública. Uma coisa é certa: parece ter finalmente compreendido a necessidade de atravessar fronteiras para escapar a condições de vida inabitáveis.
O colapso da rede elétrica do Texas tem tanto de premonição como de lição, e demonstra, de forma bastante clara, as implicações económicas e sociais de um fenómeno climático extremo. Muitos países do Sul Global, com um número crescente de refugiados climáticos, enfrentam já condições semelhantes em maior escala e intensidade. Este caso alumia um pedaço daquele que será um futuro sem o devido travão nas alterações climáticas (até aqui no nosso cantinho do Mundo Ocidental).
Como seria de esperar, os preços da eletricidade dispararam no Texas, aumentando a quantidade de pessoas em situação de pobreza energética e agravando o fosso socioeconómico entre as classes, enquanto as agências estatais e públicas tentam colmatar as necessidades da população de forma incapacitada, consequência da falta de investimento público. Não foram as empresas privadas que intervieram em defesa da população (muito pelo contrário) e, quando estas falham em servir o povo porque os seus interesses são os do Capital, é na resposta pública e popular que nos podemos amparar. Por todo o estado, surgiram centenas de iniciativas populares: as pessoas comuns auto organizaram-se para prestar apoio à comunidade, o que reflete uma sensação de coletivo bastante própria numa sociedade que nos impinge o individualismo e a apatia. A organização e a cooperação foram a salvação de muitos dos texanos durante a adversidade. Por sua vez, a mão invisível do mercado fez o seu trabalho de forma exemplar: quando veio a aflição, ninguém lhe pôs a vista em cima.
A pobreza energética é uma consequência palpável do capitalismo e um problema real. A falta de acesso democrático aos recursos energéticos, sentida por milhares de pessoas, é reflexo de uma crescente liberalização e privatização do setor energético, da criação de monopólios neste mercado e do aumento de preços dos combustíveis (particularmente fósseis), o que coloca ainda mais entraves ao alcance necessário a condições de vida digna. É isto que acontece quando mercantilizamos as necessidades humanas. É isto que acontece quando almejamos ao extraordinário Mercado Livre e deixamos as nossas vidas à mercê do Capital.
Existe apenas uma forma de conseguirmos garantir que o setor energético funciona para todos: a sua nacionalização, sob controlo dos trabalhadores. Já provamos que a ganância dita que os privados não são a resposta, o mercado livre e o capitalismo não vão solucionar um problema que criaram e deixar a situação a cargo dos atuais regulamentos governamentais e políticos também não é exatamente o ideal. A nacionalização do setor energético, de mãos dadas com a emancipação da classe trabalhadora, é a única maneira de delinear um plano de ação que permita um setor energético capaz de enfrentar a ameaça das alterações climáticas enquanto salvaguarda o emprego e as condições de vida dignas para todas as pessoas, removendo a motivação capitalista por lucro desenfreado e combatendo ativamente os monopólios e a corrupção política que fortalecem as estruturas de poder que permitem a opressão e exploração todas as pessoas. Se detivermos uma indústria controlada pelos trabalhadores e vigiada pelo público e investirmos em energias limpas e renováveis, conseguiremos testemunhar grandes progressos na eficiência energética das habitações e infraestruturas públicas, destinando recursos para comunidades em necessidade e permitindo um acesso verdadeiramente democrático aos recursos naturais e energéticos. Tal como, durante a pandemia, nos apoiamos na saúde pública, para enfrentar a crise climática, necessitamos de energia pública.
Se o estado do Texas fosse parte de uma rede elétrica pública que abrangesse outros estados, a energia fornecida em maior escala poderia ter sido redistribuída, o que viria a impedir grande parte da destruição causada pela descida intensa das temperaturas. As grandes empresas e corporações que fazem da energia um negócio como qualquer outro vão continuar a fazer uso da propriedade privada para colocar o seu lucro acima das nossas vidas. Fazer frente à exploração das pessoas e do planeta não é apenas o nosso direito, mas o nosso dever, para connosco e para com aqueles que nos rodeiam. Se esta premonição nos traz alguma luz, não lhe fechemos os olhos. Não escolhamos deliberadamente o escuro.
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