Crónica de António Capela
Economista no Banco de Portugal
Chamava-se Mark Langedijk. Tinha 41 anos, era casado e pai de dois filhos. Durante oito longos anos, debateu-se – ele e a família – com as ásperas dificuldades do alcoolismo. Recorreu mais de vinte vezes a tratamentos de reabilitação e desintoxicação, mas acabava sempre por reincidir. Quase no término desta luta, a mulher abandonou-o e foram os seus próprios pais que entraram em cena, para acolher as duas crianças do casal e para apoiar, financeira e emocionalmente, a recuperação de Mark.
Em Julho de 2016, Mark Langedijk apresentou-se num hospital holandês para pedir a eutanásia. Foi explicar que se sentia um fardo para a família; que a sua situação era irrecuperável; que não havia esperança para ele. Uns e outros – médicos e psiquiatras –, mandatados pelos parâmetros inexplicavelmente ambíguos da lei holandesa -, consideraram que, de facto, Mark Langedijk estava em “sofrimento intolerável”. Mark Langedijk recolheu o veredicto, anunciou-o à família, marcou a data e convidou os parentes para assistir à aplicação da injecção letal. A morte – o homicídio a pedido da vítima – foi a última palavra que a sociedade holandesa teve para dizer àquele homem.
No momento mais negro, mais dilacerante da vida de Mark Langedijk, a resposta da Holanda, pronunciada por médicos e psiquiatras, mas também pela passividade indiferente de políticos, jornalistas e cidadãos, foi este juízo tenebroso: consideraram que, de facto, Mark estava a sofrer. Que o seu sofrimento era de tal modo avassalador que tinha engolido toda a sua vida. Que a sua vida, como tantas vezes ouvimos a propósito de doentes terminais, “já não é vida”. Era apenas sofrimento. E que, por isso, o único paliativo, o único analgésico capaz de extinguir aquele sofrimento era a destruição da vida de Mark.
Em 2015, ano anterior à morte de Mark Langedijk, os hospitais holandeses aplicaram a eutanásia a mais de 5500 pessoas – 450 por mês. Na Bélgica, o número foi superior a 2000. O homicídio, a pedido, foi administrado a pessoas com doenças mentais e limitações físicas, a vítimas de abuso sexual e até a um homem incapaz de lidar com a sua sexualidade.
São muitas as questões se levantam – no entanto talvez uma seja essencial. Nos últimos séculos conseguimos construir sólidos sistemas de educação e abolir o analfabetismo; conseguimos, no século passado, chegar à lua; conseguimos viver em regimes que têm como esteios a liberdade e a igualdade. São verdadeiramente admiráveis os frutos do progresso.
Porém é perante tudo isto que se levanta a dúvida: depois de tanto caminho percorrido, como pode ser a morte o último serviço que a sociedade tem para oferecer a alguém? Como podemos enquanto cidadãos desistir de respostas que sejam mais humanas? Como podem os políticos resignar-se e não constatar que há aqui um problema que reclama soluções e seguramente novas abordagens? Quem pode ficar satisfeito perante esta solução final?
Enquanto a sociedade não encontrar para Mark Langedijk uma resposta que seja verdadeiramente realizadora, podemos ir à lua e voltar muitas vezes mais, mas o progresso não passará duma ilusão colectiva.
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