Bojack Horseman não só é a melhor e mais consistente série que a Netflix tem para oferecer, como é das grandes séries do século XXI: o humor é de ir às lágrimas e o comentário social é atual e não cai em lugares comuns
“Ora brilha uma gota de esperança, ora se revolta um mar de desespero, e sempre aquela dor, a mesma dor, sempre a mesma angústia, sempre a mesma coisa. Estar sozinho é terrivelmente aflitivo, apetece chamar alguém…” – A Morte de Ivan Iliitch, Lev Tolstoi
Esta citação encontra-se nesta crónica por três razões: em primeiro lugar, para haver uma parte bem escrita, em segundo lugar, porque só li as 95 páginas de A Morte de Ivan Iliitch para dizer que domino Tolstoi e, em terceiro lugar, porque dá credibilidade ao texto. Sei o que estão a pensar, é um cliché citar artistas e assumir descaradamente que os estamos a usar para dar credibilidade, no entanto ainda não é cliché dizer que isso é cliché, pelo que, como o leitor pode ver, sou uma lufada de ar fresco na arte de escrever crónicas.
A série Bojack Horseman, de Raphael Bob-Waksberg e Lisa Hanawalt, terminou na passada 6ª feira, depois de seis temporadas que balançaram comédia, tragédia e comentário social. Chegou o fim da história do cavalo triste.
A premissa é simples: Bojack Horseman é um ator e comediante que foi protagonista numa sitcom de sucesso nos anos 90 e que, agora, tem de lidar com o facto de já não ser relevante. Na primeira temporada vemo-lo escrever uma biografia para mostrar ao mundo que não é só mais um ator sem substância. Já na sexta e última observamo-lo a lidar com essa substância e toda a dor que ela causou. Apesar de parecer que a história não tinha de ser contada através de desenhos animados, a verdade é: ainda bem que assim o é. A diversidade de episódios surpreende sempre, desde um episódio sem falas passado debaixo de água (Fish Out of Water), a um episódio com um único plano passado num funeral (Free Churro) ao arrebatador penúltimo episódio desta última temporada (The View From Halfway Down). Desengane-se o leitor insuspeito, que descartou a série pelo seu formato. Há muito mais camadas por detrás da animação.
Bojack Horseman não só é a melhor e mais consistente série que a Netflix tem para oferecer, como é das grandes séries do século XXI. Aparenta ser Simpsons ou Family Guy, mas depois mostra-se ao nível de Mad Men, Breaking Bad ou Sopranos (a santíssima trindade que legitima todas as crónicas sobre televisão). O humor é de ir às lágrimas e o comentário social é atual e não cai em lugares comuns, mas há algo para além disso que aproxima as pessoas deste cavalo: a maneira crua e sensível com que lida com temas como a depressão, ansiedade ou simplesmente o sentido da vida (a santíssima trindade dos temas que têm marcado presença na cultura e na comédia).
Uma série de comédia, ao abordar estes temas, não fica uma série mais engraçada, mas torna-se numa série sobre a vida real, onde não existe uma constante necessidade de laugh-track. Disse William Faulkner que a única coisa sobre a qual vale a pena escrever é o coração humano (leia-se equino) em conflito com ele mesmo. Parece que as séries de comédia teimavam em escapar a esta regra. Era permitido um ou outro momento mais emotivo, mas no final dos 20 minutos de cada episódio tudo tinha de estar bem e umas boas gargalhadas tinham de ter sido dadas. O trágico-cómico existe desde que apeteceu a uns gregos subir para uns palcos, mas nunca tinha sido transportado de forma tão equilibrada para televisão. Pois bem, Bojack Horseman mudou o paradigma.
As partes mais tristes da série fazem nos envolver seriamente na vida de Bojack, um cavalo antropomórfico desenhado. A fragilidade tão bem representada surge como um espelho apontado para nós. Se quando somos crianças procuramos super-heróis e personagens compostas integralmente por qualidades para idolatrarmos, quando chegamos à idade adulta é o defeito que nos atrai, é pela fragilidade que nos relacionamos.
Um vilão que mostra qualidades e fragilidades humanas é infinitamente mais interessante que uma caricatura do mal que se veste de preto e tem um bigode. O mesmo se aplica aos protagonistas, dar fraquezas e dificuldades emocionais a um protagonista de uma série de comédia atribui-lhe de imediato características tridimensionais, mesmo quando se trata de uma série de animação.
A Morte de Ivan Iliitch anda de mãos dadas com esta última temporada. Tal como o russo, Bojack é obrigado a olhar para trás e aceitar a vida que levou e a tristeza que causou. É uma reflexão profunda que toca, não só ao protagonista, como ao excelente leque de personagens secundárias. Todo o processo é real, tem avanços e recuos, e pela relação com a fragilidade também nós fazemos parte dele.
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