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As mulheres continuam sozinhas

Ontem à noite pus-me a reler o conto da Maria Judite de Carvalho «Tanta gente, Mariana». É lindíssimo. É um conto sobre a solidão. Sobre o medo que todos temos de um dia ficarmos sozinhos.

Texto de Cecília Faria

Imagem de Francisca Faria


Uma das passagens mais belas do conto é aquela em que Mariana, a protagonista, relembra as palavras do pai: «Todos estamos sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta. Tanta gente, Mariana! E ninguém vai fazer nada por nós. Ninguém pode. Ninguém queria, se pudesse. Nem uma esperança».


É certo que Maria Judite de Carvalho está a falar de todos nós, da solidão que é inerente à existência humana. Estamos todos sozinhos na dor e no medo, cada um isolado dos outros e tantas vezes sem se aperceber de que está só. Porém, se lermos o conto até ao fim, percebemos que Maria Judite de Carvalho fala também de uma outra solidão que só as mulheres experimentam. A solidão imposta por uma condição que as verga e que as obriga a calarem-se ou, pelo contrário, a saberem exatamente o que dizer. Uma solidão em que as regras as aprisionam porque não as deixam viver no sentido mais literal da palavra.


Fechadas em casa, confinadas ao lar, tal como Mariana. Por um lado, a solidão é-lhes negada, porque estarem sozinhas significa que falharam, que ninguém quis estar com elas, por outro a solidão é-lhes imposta, porque enquanto os outros vivem elas vão tratando dos aspetos mais mundanos da vida, vão limpando o pó, vão varrendo o chão, vão fazendo o jantar, vão ficando em casa a polir a base sobre a qual a vida dos outros assenta.


A humilhação também é uma solidão profunda. A humilhação de ver todos os dias o corpo olhado, escrutinado, analisado, medido, imaginado sob o olhar atento de outros que nunca a deixam passar despercebida. A solidão de quando são assediadas e sentem o seu corpo profanado e sujo.

A solidão num mundo patriarcal onde estão rodeadas de homens e tantas vezes não conseguem falar e, sobretudo, não conseguem mudar o rumo das suas vidas.


As coisas mudaram, é certo. Há cada vez mais mulheres a conseguirem fazer-se ouvir. Penso até que, de alguma forma, estamos cada vez menos isoladas, menos sós, porque hoje em dia podemos partilhar experiências, podemos ouvir-nos umas às outras e falar abertamente sobre estas nossas formas de solidão que todos os dias vamos experimentando.


Porém, se há certas formas de solidão que desapareceram ou, pelo menos, foram mitigadas pela possibilidade de diálogo que nasceu e que hoje nos permite reconhecermo-nos e ajudarmo-nos umas às outras, não podemos negar que surgiu, ao mesmo tempo, uma nova forma de solidão. Cada vez sinto mais que as redes sociais nos dão uma falsa ideia de comunidade, de entreajuda e de proximidade. A verdade é que as pessoas continuam sós, fechadas nas suas casas como Mariana. Isto nunca foi tão verdade como durante a pandemia. Ninguém se cansa de cantar louvores às novas tecnologias e às maravilhas que elas foram capazes de executar nos últimos dois anos. É como se nada tivesse mudado, dizem, funcionou na perfeição e estamos todos muito próximos como se nos tivéssemos continuado a ver pessoalmente todos os dias. Porém, o que acontece é que estamos fechados em casa, a nossa vida, tal como a de Mariana, acontece agora toda dentro de portas e, por isso, nunca antes estivemos todos tão sozinhos.


Preocupa-me esta falsa ideia que se espalhou de que hoje em dia nunca ninguém está sozinho, ou melhor, que nunca ninguém precisa de estar sozinho. Basta abrir o computador, desbloquear o telemóvel e ligar-se à internet. Aí ninguém está sozinho, porque há tanta gente e todos comunicam constantemente, freneticamente. Há tanta gente, mas está tão distante, e estamos todos tão longe!


O diálogo passou para as redes sociais, é lá que hoje em dia se dão as grandes discussões, as grandes indignações, as grandes polémicas, os grandes discursos. É nas redes sociais que se têm as conversas, que se fala sobre tudo e mais alguma coisa, que os temas são banalizados e deixam de ser tabu. Mas estas lutas de sensibilização através da internet não valem nada se as mulheres continuam sozinhas. Sozinhas em casa, sozinhas na rua, sozinhas no trabalho.


A minha avó experimentou muitas formas de solidão, foi sacrificada e sacrificou-se, foi obrigada e obrigou-se a muitas coisas, demasiadas. Esteve praticamente sempre sozinha. A vida toda só, a enfrentar a vida e as adversidades sem ajudas. Quando se divorciou ninguém a ajudou, ninguém lhe deu a mão. Criou quatro filhos, teve dois e três empregos ao mesmo tempo. Acredito que as suas amigas também estavam tão sós, também se sentiam abandonadas!


O facto de atualmente falarmos de quase tudo abertamente e termos a possibilidade de o fazer não significa que a solidão acabou, que tenhamos criado uma fraternidade feminina ou uma qualquer comunidade entre todas. A verdadeira comunidade tem de ser sempre presencial, porque nós temos de estar . Lá, no lugar físico onde a outra mulher estiver. Temos de escutar, temos de abraçar, temos de limpar as lágrimas, temos de dar a mão e entrelaçar os dedos!


O meu namorado estagiou este semestre na agência Lusa e redigiu algumas notícias sobre violência doméstica contra pessoas idosas. Há uns meses entrevistou duas mulheres vítimas de violência doméstica, as duas com mais de sessenta anos. Sobre elas não sei nada, nem sequer o nome, só sei que sofreram violência doméstica a vida toda, desde os primeiros meses de namoro. Só há uns anos conseguiram separar-se dos maridos e ter alguma paz.


Não sei se elas hoje em dia acedem à internet, se se identificam com publicações, notícias, depoimentos que possam encontrar de outras mulheres como elas e se isso as ajuda ou lhes dá força. Porém, tenho a certeza de que estão sós e de que estiveram sós a vida toda.

Digo-me feminista e tento todos os dias lutar pelos direitos das mulheres, fazer a minha parte. Tenho uma amiga que durante vários meses esteve numa relação abusiva. Eu e os outros amigos dela desconfiávamos, lá no fundo sabíamos da verdade, mas nunca ousámos confrontá-la. Deixámo-la numa imensa solidão e não fomos capazes de estar presentes.


Talvez eles estivessem presentes nas redes sociais, talvez participassem acesamente nas discussões anti machistas que nasciam no Facebook ou no Instagram, mas na vida real não foram capazes e eu também não fui. Isso era o mais importante, devia ter sido, para nós, o mais importante.

Todos os anos a Companhia Maior convida um artista para trabalhar e encenar uma peça de teatro para apresentar em palco. Todos os membros desta companhia têm mais de sessenta anos. Este ano não foi possível, devido às restrições relacionadas com a pandemia, ensaiar e interpretar uma peça de teatro. Assim, Marco Martins, o artista convidado deste ano, optou por organizar uma instalação na qual, recorrendo a vídeos, fotografias e áudios, nos vai guiando pelas memórias dos membros da companhia e nos questiona acerca do que é a memória, o que significa recordar, qual o peso que as memórias têm na nossa vida.


Na instalação de Marco Martins, intitulada «Natureza Fantasma», o que mais me impressionou foi a projeção de slides que dá início à exposição e que é acompanhada de frases dos membros da companhia que nelas estão presentes. Algumas são frases que simplesmente referem o local onde foi tirada a foto e as pessoas que nela figuram. Mas outras são frases bonitas sobre o passado e a memória, sobre o que aquela fotografia representa e que já não existe. Sobre a perda, porque a memória trata quase sempre de uma perda. Não sei bem explicar porquê, mas há uma tristeza inerente a todas essas frases e a todas essas fotografias.


Olhar para o passado implica sempre pensar no que poderíamos ter feito e não fizemos, no que deixámos para trás e que talvez gostássemos de ter conservado, nas escolhas erradas e nas oportunidades perdidas. Talvez por isso seja sempre um pouco triste recordar. Maria Judite de Carvalho aborda isto no seu conto. A instalação fala-nos também do irrecuperável, porque nada do que encontramos numa nossa foto de infância, por exemplo, se pode recuperar.


Ao escrever isto penso que também há uma certa solidão nas memórias, nas boas e nas más. Quando estamos sozinhos só temos as nossas memórias, só nos resta recordar, tal como faz Mariana ao longo de todo o conto.

Voltar às memórias, sempre. Voltar ao meu lugar seguro, ao início de tudo. É nas minhas memórias que reside a minha essência e aquilo que eu sou. Mas, mais uma vez, para haver memórias é preciso não estar sozinho, é preciso ter algo e alguém para recordar.

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