São vários os agressores na FDUL, com nomes e caras (e currículos valiosos), que fazem exercício das suas posições de poder para perpetuar esta violência, mas é também o ambiente que ali se vive, o clima de medo que se entranha na comunidade estudantil, em que os alunos têm mais a perder ao apresentar uma queixa, de qualquer que seja a natureza, do que os docentes propriamente ditos.
De Raquel Moreiras
A comoção que tomou por assalto o debate público quando, ontem, o DN noticiou a quantidade de queixas apresentadas contra docentes da Faculdade de Direito de Lisboa, que versam desde assédio moral e sexual a homofobia e racismo, foi só verdadeiramente sentida por quem nunca estudou naquela que é uma das Faculdades de Direito mais prestigiadas do país. Aqueles que, hoje, lá estudam (ou que, como eu, já o fizeram) encaram o registado sem qualquer tipo de surpresa (sem ser a surpresa de alguém ter mesmo apresentado queixa).
Em setembro de 2020, se se recordam, foi noticiado, também por várias plataformas, um currículo de mestrado com premissas extremamente machistas, racistas e xenófobas. O professor encarregue do currículo em questão “sofreu consequências” (foi suspenso), e, talvez ingénua, talvez crónica crente na justiça, cheguei a ter esperança de que isso pudesse começar uma conversa séria sobre assédio na FDUL (e na Academia em geral).
Na altura, eu fazia parte de uma plataforma de estudantes exterior à faculdade e, como consequência de uma campanha contra o machismo na Academia, organizada em conjunto com outros estudantes, chegaram às minhas mãos dezenas de testemunhos de alunas que tinham sofrido algum tipo de assédio dentro daquela instituição. Eu própria fui vítima de incontáveis comentários pela parte de professores, e acho que são poucas as alunas que têm o privilégio de afirmar o contrário. Para que possam ler um relato na primeira pessoa, partilho o mais marcante de todos eles: após terminar um exame, para o qual tinha ido diretamente depois de sair do funeral do meu avô (imaginem, desde já, as condições em que me encontrava), houve um Professor Assistente, que vigiava o dito exame e, no fim, tentou impedir-me de o entregar e de sair da sala. Fê-lo bloqueando fisicamente a saída e não aceitando o meu exame, enquanto me tentava convencer de que “10 minutos ali sozinha [com ele] no anfiteatro podiam fazer toda a diferença na minha nota”. Não irei partilhar a identidade do professor em questão porque, sendo sincera, não quero fazer acusações desta gravidade infundadas, uma vez que não tenho a certeza absoluta do seu nome, dado que não era professor da minha sub-turma, eu não estava bem mentalmente no momento e foi algo que ocorreu há anos atrás. A minha visão estava extremamente enevoada e só me lembro de olhar para o chão enquanto tudo isto sucedia, a desejar, de forma angustiante, apenas poder sair dali o mais rápido possível. O que posso afirmar com confiança é que, dada a situação, contestei tudo quanto pude, até o docente finalmente ter aceitado receber o meu exame e eu ter saído a correr para fora do anfiteatro.
E o que fiz eu depois disso ter acontecido? O mesmo que, acredito, a maioria das outras vítimas que vieram antes e depois de mim: comentei casualmente com os meus amigos, no Bar Velho, sem sequer me ter passado pela cabeça fazer uma queixa formal - não só porque estava de luto, mas também porque é quão enraizada estava na cabeça da maioria de nós a impunidade dos docentes daquela instituição. Inúmeras vezes ouvi relatos semelhantes, que tomávamos como mais um queixume, digno apenas de conversas de café. Mais do que isso, já no meu primeiro ano de faculdade, alunos mais velhos partilhavam situações idênticas, como histórias contadas de geração em geração, humilhações públicas e perseguições transformadas em piadas e lenga-lengas. Não querendo desvalorizar o trauma que tantas pessoas passaram, apenas como consequência de escolherem percorrer aqueles corredores, relevo que a leviandade com que tudo isso é encarado é das coisas que mais me revolta: olhar para trás e perceber que a ideia de nos defendermos nem cruzava o nosso raciocínio.
Mais tarde, ao receber todos os testemunhos que referi, em 2020, e perceber exatamente a dimensão deste problema, e de como afetava mais alunas e alunos do que eu sequer podia imaginar (ainda que a maioria dessas partilhas viessem de mulheres), acreditei mesmo, pela primeira vez, que, talvez, pudessem existir consequências. Que, quem sabe, estes acontecimentos deixassem de ser partilhas de boca em boca e passassem a ser levados como aquilo que eram: ataques e violência que, de uma forma de outra, eram infligidos a seres humanos (sim, os estudantes são pessoas!). Acreditei que, porventura, se trouxéssemos tudo isso à luz do dia, se começássemos essa conversa e não a deixássemos morrer até marcar a diferença, as circunstâncias podiam mudar. Infelizmente, na altura, e como acontece com muitas das notícias e cabeçalhos que vislumbramos e que têm o prazo de validade do nosso curto span de atenção, o assunto acabou por aparentemente morrer no debate público, continuando, todavia, extremamente presente no dia-a-dia das alunas e alunos daquela instituição.
Não posso deixar de referir que o problema não é um ou dois professores em particular; são vários os agressores, com nomes e caras (e currículos valiosos), que fazem exercício das suas posições de poder para perpetuar esta violência, mas é também o ambiente que ali se vive, o clima de medo que se entranha na comunidade estudantil, em que os alunos têm mais a perder ao apresentar uma queixa, de qualquer que seja a natureza, do que os docentes propriamente ditos. Por isso, muito me apraz ver que, finalmente, se fazem queixas formais e que se inicia uma recusa concreta da normalização destes comportamentos. Agora, resta ver se existirão ou não consequências materiais, ou se será, novamente, assunto varrido para debaixo do tapete. Só me resta ter esperança de que os estudantes que lá permanecem percebam o poder que têm verdadeiramente, que continuem a usar todos os instrumentos ao seu dispor para não se deixarem ficar e que edifiquem a mudança, mesmo que seja pelas próprias mãos. Nesse sentido, louvo a iniciativa do Movimento Contra o Assédio Sexual na Universidade de Lisboa, e apelo à presença de todos os estudantes na manifestação contra o assédio sexual no meio académico, que se realizará no dia 7 de abril, às 18H, na Alameda da Reitoria. Ainda que a esta cronista seja impossível comparecer na cidade de Lisboa para testemunhar a força do movimento estudantil, confio que aqueles com quem já tive o gosto de partilhar lutas e salas de aula levarão a garra necessária para as ruas, mas também para os centros de decisão, com vista em transformar materialmente o modus operandi da nossa Academia.
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