O maior risco para a saúde pública, no atual estado de coisas, não é o consumo da canábis em si, mas a apropriação desta pelo tráfico, pelo crime e pela insegurança do produto. É hora de legalizar-se o cultivo, comércio e consumo da canábis,
Crónica de Gonçalo Mesquita Ferreira
Foi exatamente há 20 anos que Portugal aprovou a descriminalização da aquisição, posse e consumo de drogas, numa iniciativa legislativa que marcou uma mudança de paradigma no combate e tratamento da adição.
De facto, durante o período de vigência da Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, - que define o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a proteção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica -, tem-se constatado uma substancial redução ao nível do consumo de drogas e dos problemas de saúde que lhes estão associados.
Estes dados revelam a ineficácia de uma abordagem criminalizadora e proibicionista, confirmando que a adição não é um problema criminal, mas de saúde pública.
Não pretendendo menorizar os problemas de saúde conexos com o consumo da canábis, creio ser relevante compará-los com os efeitos nocivos de uma substância cuja aquisição, posse e consumo é regulamentado: o álcool.
A este respeito, dados do SICAD (Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências) referem que 10% da população portuguesa já terá consumido canábis pelo menos uma vez na sua vida e que 4,5% consome esta substância, no mínimo, uma vez por ano. Ainda de acordo com esta entidade, em 2018 não se registou qualquer vitima mortal associada ao consumo de canábis, enquanto que, durante esse mesmo período, 2493 pessoas morreram com causa atribuída ao álcool.
Estes dados são úteis para que se possa fazer um outro enquadramento: isto significa que cerca de 10% dos cidadãos e cidadãs, para obter acesso a uma substância cujo grau de letalidade é em tudo inferior à das substâncias alcoólicas, tem de entrar em contacto com criminalidade organizada para a adquirir.
Isto dá origem a que este tipo de criminalidade gere uma imensidão de lucro obtida através destes mercados clandestinos, mercados esses onde a origem e (falta de) qualidade do produto aí vendido é um risco acrescido para a saúde do consumidor.
Por outras palavras, significa isto que o maior risco para a saúde pública, no atual estado de coisas, não é o consumo da canábis em si, mas a apropriação desta pelo tráfico, pelo crime, pela insegurança dos produtos e pelo acesso a drogas mais “pesadas” e nocivas que a canábis.
É, pois, hora de aproveitar a efeméride dos 20 anos sobre a “descriminalização das drogas” para, unicamente com base na evidência, se voltar a dar um passo rumo ao progresso. É hora de, rejeitando estereótipos e preconceitos, legalizar-se o cultivo, comércio e consumo da canábis.
Esta deve, tendo em conta a especificidade da matéria, ser uma regulamentação exigente ao nível do cultivo, da transformação do produto, da distribuição e do seu comércio. Deve haver uma cadeia de valor que, para além de trazer valor acrescentado, tenha como última ratio a proteção dos seus consumidores, sobretudo em face de substâncias sintéticas e adulteradas.
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