Penso que o que marca verdadeiramente a diferença entre O Cavaleiro das Trevas e Joker é a forma como cada um retrata a violência. No primeiro caso, temos apenas acesso ao que o filósofo Slavoj Žižek chama de “violência subjectiva” – a violência óbvia que surge “contra o pano de fundo de um grau zero de não-violência” – a violência que todos somos capazes de identificar. Joker, por outro lado, mostra-nos a “violência objectiva” de Žižek – “uma violência invisível uma vez que é nela que se sustenta a normalidade do nível zero contra aquilo que percebemos como sendo objectivamente violento”.
de Constança Cardoso
Imagino que a maior parte dos leitores esteja minimamente familiarizada com o universo de Gotham, a cidade do famoso herói-morcego. Confesso que não sou grande fã das bandas desenhadas mais antigas, creio que as narrativas estão um pouco ultrapassadas e caem demasiado na tradição maniqueísta dos bons versus maus. Porém, recentemente, tanto em banda desenhada como em filme, têm surgido novas adaptações das histórias clássicas que lhes dão uma profundidade muito interessante. Para os propósitos deste texto irei focar-me nos exemplos cinematográficos mais recentes e populares: a trilogia do Cavaleiro das Trevas (2005-2008-2012) de Christopher Nolan e Joker (2019) de Todd Phillips. Ambos retratam o mesmo universo e muitas das mesmas personagens. No entanto, cada um deles revela uma mundivisão radicalmente diferente.
Não vou esconder, desde já, a minha preferência pelo segundo, que penso representar uma crítica bem mais séria e profunda do contexto que habitamos, bem como do próprio universo do Batman. Para começar, Joker revela a história que teve de ser escondida para que o herói pudesse existir. É a primeira vez que temos acesso à infância de Bruce Wayne (Batman) desde uma perspectiva de fora. Na versão clássica, adoptada também na trilogia de Nolan, a história é contada a partir do ponto de vista de Bruce: os pais são assassinados à sua frente por um assaltante à saída do teatro quando Bruce era apenas uma criança. Mais tarde, a sua raiva e sede de justiça, ou vingança, ou ambos, levam-no a abandonar Gotham e a treinar artes marciais durante sete anos. Ao voltar torna-se o herói nocturno que todos conhecemos. A sua história de origem parece única e o leitor, ou espectador, desenvolve grande empatia pelo seu comovente passado e sentido de missão.
Joker desmancha tudo isto. Em primeiro lugar, apresenta-nos uma versão de Thomas Wayne, pai de Bruce Wayne, altamente provocatória. É a primeira vez que este não é um homem bondoso, honesto e generoso. Ou melhor, é assim que é descrito nos media: um milionário com um coração de ouro que oferece uma parte da sua fortuna à caridade, como, aliás, é comum na vida real. Ao longo do filme, porém, descobrimos que a sua preocupação com os mais “desafortunados” é meramente uma questão de aparências. Para além disso, é uma personagem que ilustra a “bolha social” em que vivem as classes altas, ignorantes da realidade das camadas mais desprotegidas da sociedade. No filme, após ser dada a notícia de que três jovens empresários foram assassinados no metro de Gotham, Thomas Wayne faz o seguinte comentário:
“What kind of coward would do something that cold blooded? Someone who hides behind a mask. Someone who is envious of those more fortunate than themselves, yet they're too scared to show their own face. And until those kinds of people change for the better, those of us who made something of our lives will always look at those who haven't as nothing but clowns”.
Ou seja, na sua cosmologia, a única razão lógica para um pobre matar um rico é o facto do primeiro, um “falhado”, invejar o segundo por este “ter feito algo da sua vida”. É então destruída a imagem da nobre família Wayne, a família de bem, que serve de justificação para o Bruce se tornar o Batman: continuar o legado do pai trazendo justiça a Gotham.
Penso que o que marca verdadeiramente a diferença entre O Cavaleiro das Trevas e Joker é a forma como cada um retrata a violência. No primeiro caso, temos apenas acesso ao que o filósofo Slavoj Žižek chama de “violência subjectiva” – a violência óbvia que surge “contra o pano de fundo de um grau zero de não-violência” – a violência que todos somos capazes de identificar. Joker, por outro lado, mostra-nos a “violência objectiva” de Žižek – “uma violência invisível uma vez que é nela que se sustenta a normalidade do nível zero contra aquilo que percebemos como sendo objectivamente violento”.
O final de Joker, em comparação com o final da trilogia é por si ilustrativo destas duas perspectivas. No fim de The Dark Knight Rises é instaurada em Gotham uma espécie de ditadura do proletariado distópica. Bane, último vilão da trilogia, declara querer devolver o poder ao povo de Gotham, libertando os criminosos da prisão de segurança máxima de Blackgate. Os ricos são despejados violentamente e as suas casas são vandalizadas pelo povo no que parece uma caricatura constrangedora do movimento Okupa. Ilustra-se uma pseudo revolução proletária, mas de forma tão sensacionalista que chega a ser cómico.
Joker também termina com uma insurreição violenta.
Mas, contrariamente ao que dizem muitos críticos, esta não me parece servir para apelar à violência, tampouco para a condenar. Não creio que sirva para dizer “este é o caminho”, nem “vejam o que acontece quando entramos em radicalismos”. Ela nem sequer serve para filosofar sobre as consequências de protestos violentos. Serve apenas para ilustrar um ponto de ruptura perante a violência invisível do neoliberalismo, bem como da “esquerda fukuyamista”. Ou seja, a esquerda que é incapaz de imaginar um mundo para além do capitalismo e que se foca apenas em pequenas reformas aqui e ali. Um pouco mais de subsídios, um pouco mais de planos de saúde, mas, em geral, o sistema mantém-se. A “esquerda” democrata americana, por exemplo.
Penso que esta passagem de Žižek poderia perfeitamente responder aos críticos que acusaram Joker de apelar à violência: «Hoje, muitos liberais, quando se confrontam com explosões violentas como as das recentes desordens nos subúrbios de Paris, perguntam aos poucos esquerdistas que apostam ainda numa transformação social radical: “Não foram vocês que fizeram isto? É isto que vocês querem?” e nós devemos responder, como Picasso: “Não, isto foram vocês que fizeram. É este o verdadeiro resultado da vossa política”».
O fim do filme ilustra o ponto de saturação que se segue à era dos Batmans, das noções impostas de justiça, das distrações folclóricas que desviam a atenção da raiz dos problemas. Bruce Wayne tem poder e influência suficientes para servir como um estado dentro da cidade e ainda assim escolhe gastar o seu tempo dinheiro em tornar-se um vigilante nocturno que bate em doentes mentais e ladrões de rua. Vá, de vez em quando um mafioso ou outro. Nunca visita um gueto sem ser quando é para bater em criminosos cujo passado nunca questiona. Ainda assim, justifica a sua autoridade enquanto Batman através da sua comovente história de superação. Uma justificação que não concede a mais ninguém.
Na trilogia de Nolan, condena-se o crime, apela-se a um ideal de justiça, punição e celebram-se os incorruptíveis. Em Joker, reflete-se sobre a violência. Mas não a violência de uma insurreição, nem a violência criminosa condenada pelos heróis. A violência quotidiana de uma sociedade em decadência. A vida na zona mais miserável da cidade, o apartamento sujo, escuro e minúsculo, os cortes aos apoios sociais, a falta de acesso a medicamentos e ajuda psicológica, o trabalho desgastante e mal pago, o contraste com a família Wayne, que, através do ecrã, discursa sobre meritocracia. Reflecte também sobre a violência do quotidiano de um doente mental numa sociedade “depressivo-fóbica”. Uma sociedade, tal como a nossa, que impõe a ditadura do sorriso mesmo nos contextos mais precários. Nas palavras da personagem principal:
“the worst part about having a mental illness is that people expect you to behave as if you don’t”.
A trilogia é sobre a nobreza de nos mantermos fiéis a um ideal de justiça, mesmo quando tudo parece injusto e cruel. A virtude de sermos agentes do Bem num mundo de corrupção e violência. Tenta ensinar-nos que todos podemos seguir esse caminho, se tivermos força de vontade, independentemente do contexto.
Em Joker não existe essa noção de “agente do bem” pois há a consciência de que o “bem” e a “justiça” são definidos por quem está no topo da pirâmide e o seu mundo não corresponde ao dos de baixo. Joker é sobre a violência invisível que o poder exerce todos os dias sobre os mais vulneráveis, mas que os “heróis” nunca vêem nem condenam. É sobre o inevitável ponto de ruptura, a reação necessariamente violenta que segue esta realidade. O momento em que os “heróis” finalmente reparam nestas pessoas, para as começarem a ver como vilões.
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