De Hélder Verdade Fontes
Quantos de nós não cresceram com histórias de príncipes e princesas, bailes e sonetos, árias e romantismo? Quem, com esses contos, nunca se imaginou num cenário luxuoso onde muitas vezes não se aplicavam as normas que hoje seguimos e todos os nossos desejos eram satisfeitos?
Esse cenário idílico, passado pelos nossos pais e professores, por livros e contos infantis, foi marcadamente inspirado na realidade da Belle Époque, o período entre a segunda metade do século XIX e 1914 na Europa.
Como acredito que somos vincadamente moldados pela infância, creio que esse imaginário fantasioso com o qual crescemos tenha sido objecto de procura. E procuramos tanto que acabamos por encontrar: sejam bem-vindos à BelleÉpoque!
Mas, então, se assim é, que é feito das princesas, das riquezas, da comida farta? Já lá vamos.
Na realidade, apenas uma pequena parte da Belle Époque nos foi contada: a de uma mera fracção do 1% mais rico. Este período foi dominado por uma micro-elite estanque e caracterizado por uma concentração brutal da riqueza e uma desigualdade crescente.
Apesar de algum progresso a nível educacional, por comparação com o período imediatamente anterior, a esmagadora maioria era manifestamente pobre e a mobilidade social era praticamente nula, tornando virtualmente impossível qualquer ascensão social.
É bastante dúbio que pudéssemos sequer estar num casamento com príncipes ou princesas, quanto mais ser um dos noivos, até porque os casamentos arranjados entre a própria elite não eram mero acaso — eram norma e requisito fundamental para a concentração de capital.
Mas nem só de desigualdade e casamentos arranjados se fez esta época.
Caracterizada pelo imperialismo decorrente da Pax Britannica, a Belle Époque promoveu a destruição de comunidades, o desenraizamento dos cidadãos e o crescimento das tensões graças a uma incessante procura por novos mercados onde colocar (eufemismo para retirar) capital. A subjugação, domínio e exploração não ocorreram de forma displicente — foram necessidade fulcral para a subsistência da ordem liberal.
Naturalmente, é impossível que uma época assim edificada consiga durar muito tempo.
Alguém ainda se lembra do término abrupto da Belle Époque?
As tensões entre países, sistemas, sociedades e pessoas culminaram na primeira guerra mundial, deitando por terra a ordem instalada. Dos escombros, a contínua intransigência dos liberais a qualquer planeamento social ou descentralização comunitária do poder como força correcta das desigualdades levou, inevitavelmente, à instituição de instabilidade no seio das sociedades.
Aliado a um sentimento asfixiante de impotência — devido, sobretudo, ao bloqueamento político, social e económico dos liberais —, o fascismo tornou-se inevitável como força agregadora e alegadamente correctora de todos os problemas.
Hoje, sabemos que não era mais do que pura retórica, porque o fascismo edificou-se usando os mesmos pilares: concentração de capital; imperialismo; desigualdade; ausência de liberdade. Mudaram-se os cortinados, mantiveram-se algumas traves mestras.
Tive de me conter ao escrever os parágrafos anteriores porque as parecenças com os nossos tempos são esmagadoras.
Claro, casamentos arranjados já não são a norma no ocidente, mas não precisam de ser quando existe uma clara atracção pela carteira do companheiro: a homogamia matrimonial, em termos financeiros, está mais do que documentada.
A homoplutia entre rendimentos e capital (conjugação elevada de ambos) é cada vez mais reforçada. A mobilidade social é menor, tanto porque o fundo como o topo da escada social são bastante pegajosos (sticky). A concentração da riqueza não cessa de aumentar, alargando o fosso entre os mais ricos e os mais pobres, cada vez mais marginalizados.
Estamos, aos poucos, a travar o acesso ao capital e a retomar os níveis de desigualdade da Belle Époque.
O incessante comércio internacional imposto à força continua com a mesma intensidade, só que já não se deve ao Reino Unido. Na realidade, esse imperialismo já não é desenvolvido por um só país — nem poderia —, mas por todo um sistema comum à esmagadora maioria: o capitalismo neoliberal. É impossível ignorar a destruição de comunidades e regiões, a alienação e atomização dos indivíduos, a asfixia competitiva e o aumento das tensões entre blocos regionais decorrente da expansão contínua e distópica do neoliberalismo.
Não é isto uma adaptação pós-moderna do imperialismo da Belle Époque?
O recrudescimento do fascismo na Europa não é mera casualidade ou oportunismo. É consequência natural do fim da Belle Époque do século XXI.
A atitude de liberais e conservadores na promoção ad nauseam da liberdade negativa levará, inevitavelmente, à sua própria abnegação. Isto porque, entre rumar à igualdade ou aprofundar o capitalismo, a escolha parece-lhes muito simples.
Ou muito me engano ou preparem-se para um abanão: o nosso sonho de criança irá rapidamente tornar-se em pesadelo.
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