Vamos ao teatro? #5
Caríssimos leitores, desta feita, trago-vos um testemunho de um grupo de loucos que se juntou para fazer um musical. Se gostarem de musicais: ótimo. Se não gostarem: tanto melhor, menos um fator para vos fazer pensar em teatro de determinada maneira.
de Henrique Rainho
Fotografia de Mariana Vieira (@marianavieiramv)
Um professor, que tem tanto de ágil como de louco, uma turma de finalistas de interpretação - cuja avaliação estava há muito acabada -, um corajoso grupo de músicos (alunos e não alunos), dois bravos desenhadores de luz, três mestres figurinistas e um quê de loucura juntaram-se, num café concerto, e encenaram um concerto da obra "Jesus Christ Superstar", com música de Andrew Loyd Webber e letras de Tim Rice.
Aviso já que a repetição da palavra "louco" é propositada, pois o mínimo de sanidade inviabilizaria, de imediato, uma empresa como a que vou partilhar convosco.
Tudo começa com a tal turma finalista e o professor louco, que, ao longo de aulas semanais, vai correndo o musical, à medida do que os alunos vão conseguindo absorver a cada aula, cada pontapé, nas que pareciam línguas, não só estrangeiras, mas extraterrestres a dadas alturas - o inglês e a música - o que contribuiu para que a loucura a par com a diversão e a evolução fosse aumentando, exponencialmente. De repente, o professor louco pergunta: "E se apresentássemos isto? [palavras chave] Apetece-vos? Seria divertido?"
As sementinhas começaram a germinar, umas mais depressa que outras, como em qualquer horta sustentável, e depressa havia uma aluna a contactar músicos, uma associação de estudantes, amigos de amigos que tocam e operam som; outra aluna a fazer listas de material necessário, a falar com as já mencionadas mestras figurinistas; outro aluno a encenar os outros todos com a força e a amizade que só os amigos conseguem.
De uma semana para a outra, o que era uma aula, transforma-se numa semana de ensaios intensivos em cima de aulas e trabalhos que têm que ser entregues se queremos o canudo. Noutro dia, temos um baterista alucinado, um baixo atordoado, cantores cansados, um professor à beira de um ataque de nervos… enfim, uma loucura, mas todos inspirados. (No meio disto tudo há outra louca a fazer uma reportagem e vídeo… Meu Deus…)
Trabalhámos para aquilo, todos, estamos cansados, todos, queremos fazer aquilo, todos, vai ser incrível, TUDO!
Cinco membros de uma tribo vão fazer uma espera ao público à porta, fazem o típico aviso dos telemóveis desligados ou sem som (mas não o da não captação de imagem, nós queremos é que haja registo disto tudo!).
O público senta-se, vê um grupo de pessoas vestidas de preto, algo de andrógeno em cena, com muitas botas, meias de rede e eyeliner, e pode ler este brilhante texto que o meu querido Simão Collares fez questão de escrever na folha de sala:
Na aldeia ESMAE vive uma tribo Punk pós-cortes orçamentais
habitam o café-concerto Francisco Beja como sua casa por direito
músicos, atores, empregadas do bar, da limpeza, técnicos de som e luz,
designers, figurinistas, cenógrafos, compositores, professores, gerentes de serviços
audiovisuais, serviços académicos, presidentes de toda a espécie associações legais ou clandestinas
coletivos artísticos ou de amor
pessoas que ainda se encontram neste espaço para criar alguma coisa no cigarro pós-laboral do intervalo curto entre ensaios
e trabalhos
inacabáveis inacabados
por investigar
por ler
por fazer
por cometer
o crime de transgredir a F.U.C. (you) e ir além do que se espera
do que se planeia
ir além dos cortes orçamentais e ser verdadeiramente pós-pensamentos derrotistas
esta aldeia não se faz de quem se verga
esta tribo não representa os lambe-botas que a tentam anular
sim a linguagem é violenta porque o motivo é nosso e apropriados apropriamo-nos disto
do livro sagrado
dádiva do céu
que nos une além de fronteiras imaginárias nos corredores além de faltas disto ou daquilo
unos para provar a esta aldeia o quão fértil é o seu solo quando todos o cultivam
Dá-se um espetáculo de uma hora e quarenta e quatro minutos de música, canto, dança, teatro, calor, suor, maquilhagem que escorre e arde nos olhos, lágrimas de dor e de emoção, nos atores, nos músicos, nas figurinistas, nos técnicos de luz, som e no público, e no fim, um estrondo de alegria como ainda poucas vezes senti.
Mais do que as palmas e os gritos, que foram muitas e poderão ser uma métrica óbvia da receção de um espetáculo, senti uma alegria imensa, que vinha de mim para a sala e da sala para mim, e acho praticamente impossível mais ninguém ter partilhado esta sensação (estarão à vontade para o contrapor, agradeço-o até).
Caríssimos, deixei-vos uma história relativamente curta, de uma criação em contexto e para uma comunidade escolar, mas intensa (espero que a adjetivação - a variada e a repetida - tenham contribuído para isso), para que possamos refletir sobre o que é que levou este grupo de alunos, sem a pressão de uma avaliação final, de uma apresentação, de uma aula aberta, do que quiserem chamar-lhe, a condensarem quase todo o trabalho de uma produção, que levaria, pelo menos, as mesmas duas semanas que tivemos, mas sem aulas nem trabalhos, com tanta ou mais motivação que um outro trabalho qualquer?
Será que poderíamos espelhar ou contaminar o ensino “não artístico” com esta ideia (louca, decerto) de concentrar os esforços num processo, ou antes num objetivo definido em conjunto, por oposição a respostas a perguntas, metade das quais ninguém nunca mais nos irá fazer?
Vamos?
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