Nos últimos anos, a Hungria tem sido retratada pela imagem do governo liderado por Viktor Orbán. No poder desde 2010, Orbán é reconhecido por implementar medidas autocratas que promovem restrições à liberdade de imprensa e a perseguição a minorias étnicas e sexuais.
de Afonso Madeira Alves
Budapeste, o romance absolutamente admirável de Chico Buarque, conta-nos a história de José Costa, um talentoso ghostwriter que intervala uma vida dupla entre o calor do Rio, no conforto da sua mulher, e o frio quente da capital magiar, personificado na relação com Kriska, sua amante e professora de húngaro.
Enfeitiçado pelo desejo de dominar a beleza da “única língua que o diabo respeita”, José Costa — ou Zsoze Kósta, como se aceita chamar — cedo reconhece que o húngaro é um idioma que apenas se dá a conhecer por inteiro, exigindo-lhe uma dedicação tão grande que condena a sua língua materna a um impiedoso esquecimento. Num dos melhores episódios do livro, Costa telefona da rua para casa de Kriska e, num húngaro tosco acabado de decorar, avisa-a que ele “aí está chegando quase”. Ao ouvir as gargalhadas da sua professora, o brasileiro sente-se derrotado e impelido a acabar com as aulas de um curso impossível. Porém, no frenesim da sua jornada, Costa vai decifrando a violência da língua húngara, descobrindo a voz de um povo arrebatador, com noites e política de rock'n'roll.
Nos últimos anos, a Hungria tem sido retratada pela imagem do governo liderado por Viktor Orbán, um primeiro-ministro nacionalista que tem fomentado a dissidência, desafiando a unidade europeia e os valores democráticos da Comunidade.
No poder desde 2010, Orbán é reconhecido por implementar medidas autocratas que promovem restrições à liberdade de imprensa e a perseguição a minorias étnicas e sexuais.
De forma a alargar a sua esfera de influência, preencheu o Tribunal Constitucional com juízes leais ao seu partido Fidesz, permitindo-lhe alterar a constituição a seu bel-prazer, aprovada por dois terços de domínio parlamentar. Sucessivamente condenada pelas instituições internacionais, a investida autoritária por parte do governo húngaro tornou-se no ponto de partida para quem descobre um país cortado pelo Danúbio.
Numa recente conferência internacional, Orbán resumiu a sua acção política como uma necessidade de “defender um país pequeno como a Hungria, onde é impossível governar como uma superpotência”. Para si, a Nação não pode ser oposição, pois está acima de qualquer combate partidário:
“O que será mais importante do que ser húngaro?”, pergunta. Desta nuvem de nacionalismo velhaco, adensada com a rejeição de um Estado laico, há em nós um reconhecimento instantâneo de similitudes com quem noutros tempos se soube sentar em aforismos: são homens que fingem tudo dar pela Nação, e nada terem contra a Nação.
Assim, e antevendo todas as dificuldades que se espera no combate a um regime autoritário, a oposição encontrou força na unidade. Reeditando uma solução que se provou vencedora nas últimas eleições municipais, seis partidos da oposição, da esquerda à direita, estabeleceram uma coligação sem precedentes que ultrapassa barreiras ideológicas — no passado domingo, foi eleito o candidato único para fazer frente a Orbán nas legislativas do próximo ano. Após eleições primárias a duas voltas nos diferentes círculos eleitorais, o candidato eleito espelha a vontade de cortar não só com o presente, mas também com o passado.
Péter Márki-Zay, um democrata-cristão independente que preside uma remota cidade a sul, contrasta sobremaneira com tudo o que veio antes de si. Reivindicando uma Hungria laica, recusa a degeneração radical do governo que promove valores religiosos através de manifestações xenófobas e homofóbicas; prometendo acabar com a corrupção sistémica do Fidesz, não esquece o legado de profunda crise financeira deixado pelo anterior primeiro-ministro Ferenc Gyurcsány, figura antagónica para o eleitorado e actual marido de Klára Dobrev, a concorrente de centro-esquerda de Márki-Zay na segunda volta.
No discurso de vitória, Márki-Zay reconheceu que, ganha a batalha, importa agora que a coligação esteja pronta para a guerra — serão seis meses de ataques à sua figura ainda imaculada, de campanhas sujas contra quem o rodeia, de desinformação que pode colocar em causa a confiança entre parceiros interpartidários — no fim de contas, serão seis meses de política. Por agora, ficou provado que a oposição se soube organizar, ultrapassando todas as rasteiras do regime que incluíram uma série de ciberataques ao processo eleitoral.
Doravante, a coligação terá que demonstrar ao povo húngaro não só a sua capacidade de ganhar as eleições legislativas, mas também de criar uma alternativa a um sistema que se encontra estruturado em algo que não é uma democracia: decisões como desenhar uma nova constituição, deixar cair negócios lucrativos com os regimes russo e chinês e almejar uma relação estável com a Europa que lhe permita a entrada na zona euro farão parte da viragem que Márki-Zay pretenderá liderar. Surge a oportunidade para um país, tão fustigado no passado, poder olhar para o futuro.
Quem visita o imponente Museu Nacional da Hungria, sai de lá com uma lição documentada de mais de mil anos de sucessivas guerras contra os mais variados povos e regimes. No século XVI, são derrotados pelos Turcos após terem sido uma barreira inconsequente do Ocidente Cristão. Em 1849, lutam sozinhos pela sua independência e acabam dominados pelo Império Austríaco e pelos Russos. Na história das duas Grandes Guerras, perdem dois terços do território após a queda do Império Austro-húngaro na Primeira, e na Segunda passam de nação filiada ao Eixo para uma transição violenta rumo ao Comunismo soviético até à sua queda em 1989. Em quase todos os capítulos, os húngaros foram deixados ao abandono pelas superpotências, sofrendo inúmeras mutações a nível governativo e territorial, sem nunca terem sido a principal força precursora destes movimentos bélicos.
Tudo isto me diz muito.
Interrompi a minha estadia na Hungria dois dias após Orbán ter culpado publicamente os estrangeiros pela propagação do vírus. Numa altura em que o mundo improvisava, assustei-me com a minha curiosidade mórbida por, num primeiro momento, preferir ficar e ver no que é que “aquilo” daria: testemunharia a morte da democracia húngara por parte de um regime que já governava por decreto? Assistiria a um aumento de manifestações de extrema-direita à minha porta? Conseguiria fingir-me húngaro, caso fosse necessário?
A tais perguntas, não precisei de dar uma resposta. Já sentado no avião de regresso, achei prematuro e derrotista assumir que uma ditadura do Viktator — alcunha “carinhosa” dada pelo povo a Orbán — se tinha instalado sem ponto de retorno. Contudo, a crescente impaciência europeia com a Hungria levou-me a crer que se poderiam repetir erros históricos. É o dever das instituições democráticas não desistirem de um dos seus.
Em Abril do próximo ano, na altura das legislativas, pretendo ligar aos amigos que por lá deixei e dizer-lhes, no húngaro mais inteligível que conseguir: “aí está chegando quase”.
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