Cabo Delgado é uma das províncias mais pobres de Moçambique, com altas taxas de analfabetismo e desemprego. No entanto, desde a descoberta de enormes depósitos de rubis e gás natural, as expetativas de melhoria cresceram na região, mas também as atenções indesejadas.
Artigo de Inês Moreira
Estudante de Medicina, NOVA Medical School
O bairro da minha infância
Não são as criaturas que morrem.
É o inverso:
só morrem as coisas.
As criaturas não morrem
porque a si mesmas se fazem.
E quem de si nasce
à eternidade se condena.
Uma poeira de túmulo
me sufoca o passado
sempre que visito o meu velho bairro.
A casa morreu
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde dormir.
Mas eis que,
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres risos
de meninos brincando.
Riem e soletram
as mesmas folias
com que já fui soberano
de castelos e quimeras.
Volto a tocar a parede fria
e sinto em mim o pulso
de quem para sempre vive.
A morte
é o impossível abraço de água.
Escreveu Mia Couto, o escritor mais traduzido de Moçambique, no seu livro de poemas “Tradutor de Chuvas”, publicado em 2011. Uma série de tragédias trouxe Moçambique para a ordem do dia. O que se passa então em Cabo Delgado?
Dezenas de pessoas morreram após um ataque de militantes islâmicos à cidade de Palma, localizada na província de Cabo Delgado no norte de Moçambique. Este ataque, iniciado a 24 de março, é o mais recente numa escalada de violência que tem assolado a região, predominantemente muçulmana. Iniciados em 2017 e agravados nos últimos 12 meses, estes conflitos já deixaram mais de 2.500 mortos e 700.000 deslocados à sua passagem. Testemunhas relatam praias repletas por corpos decapitados. Uma mãe disse à Save the Children que assistiu à decapitação do seu filho de 12 anos perto de onde se escondia com os seus outros filhos. Este é apenas um dos muitos relatos no que toca ao horror vivido por muitos moçambicanos.
Mia Couto, desafiado pela Fumaça a escrever sobre estes ataques, diz conhecer bem a região graças aos inúmeros encontros proporcionados pelos estudos ecológicos que realizou naquelas zonas costeiras enquanto biólogo. “Cruzávamos na estrada com elefantes, a aldeia onde eu acampava foi objeto de ataques de leões que, num espaço de três meses, devoraram 25 mulheres camponesas. A presença do Estado era uma coisa vaga, quase inexistente. Foi ali – e não podia ser em mais nenhum lugar de Moçambique – que escrevi o romance “A Confissão da Leoa” (...) Vou deixar de lado outras dimensões daquelas sociedades da costa de Cabo Delgado (é importante entender que a violência atinge sobretudo os distritos litorais). Seria importante conhecer tensões étnicas que possuem raízes antigas, sobretudo naquela zona costeira. Recordo-me de que, enquanto preparava para escrever um outro livro, viajei por aquelas zonas em busca de memórias da escravatura. Ninguém se oferecia para depor, ninguém queria partilhar histórias antigas. Escravatura?, perguntavam, fingindo-se perplexos. Nunca aqui houve nada disso, respondiam. Até que um dia um velho deu-me o seguinte conselho: há pedras que não se levantam, debaixo delas moram fantasmas que nunca foram enterrados." (excerto retirado do artigo "Há pedras que não se levantam").
Neste artigo o escritor não quis dar respostas, apenas sugerir que, “como disse o velho pescador, há fantasmas antigos por debaixo de pedras. A violência em Cabo Delgado tem dimensões históricas, sociais, religiosas que escapam a uma resposta fácil e total.”
Cabo Delgado é uma das províncias mais pobres de Moçambique, com altas taxas de analfabetismo e desemprego. No entanto, desde a descoberta de enormes depósitos de rubis e gás natural, as expetativas de melhoria cresceram na região, mas também as atenções indesejadas. Como refere o escritor, a situação é de uma complexidade extrema, não devendo ser alvo de reducionismos, mas sim da atenção de todos nós.
No seguimento destes ataques, o Governo português decidiu enviar cerca de 60 militares para reforçar a ajuda na formação das forças especiais moçambicanas, auxiliando pela via da formação e preparação no combate ao terrorismo. Os primeiros elementos do contingente português partirão na primeira quinzena de abril, confirmou à Lusa o Ministério da Defesa.
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