“Pó no pé, céu azul / Não troco o pôr do sol / Na pele, sou do sul / O meu creme é o teu sal // (...) Luz, maré, céu azul / Memórias de jasmim / Na pele, sou do sul / E o mar esculpiu-me assim // Vem cá ver / Derreter / Até ao fim” [Pó no pé, Cassete Pirata]
de Joana Soares
Fotografia : Quino Al, via Unsplash
Sempre gostei de visitar lugares que tivesse visto em séries, filmes ou livros, terras de escritores, músicos, artistas. E porque não de ceramistas? Um destes fins de semana chuvosos, fui passear às Caldas da Rainha, a terra da cerâmica, onde foram filmadas algumas das cenas da série portuguesa "Causa Própria".
Do coreto e da feira de velharias do Parque D. Carlos I até aos músicos que cantavam pelo jardim em frente ao antigo Hospital das Termas das Caldas, naqueles dias, a cidade transpirava arte. Ou talvez não passasse da primeira impressão de quem chegava de fora, apressadamente num dia de chuva, para um workshop de cerâmica, a caminho do qual ainda houve estômago para uma sopa da pedra no restaurante de outra mãe e outra filha, com vidas tão distintas e com tanto em comum connosco. Falámos das dificuldades do presente que nos pede para desacelerar o passo. Falámos de boa comida, de memórias de racionamento das nossas avós e bisavós que viveram na altura da guerra. Falámos dos nossos medos e, como mulheres fortes e determinadas, ainda encontrámos motivos para rir e nos encorajar a continuar. Porque não há outro caminho.
Este início atribulado e emotivo levou-nos, depois de alguma logística de primeiro mundo, à Zona Industrial das Caldas, onde nos esperava uma tarde inteira dedicada à cerâmica - debaixo de um telheiro abrigado da chuva, onde se matavam saudades de música de outras décadas e um cão branco pedia festas, assustado com o mau tempo. Neste espaço embrionário e intrauterino, nasciam peças de todos os cantos possíveis e imaginários.
Nunca deixo de me surpreender com a capacidade quase inata de alguns lugares e pessoas nos fazerem sentir em casa, como um relógio parado no tempo, onde podemos simplesmente existir enquanto nos apetecer.
O entusiasmo de pôr as mãos na massa era denunciado por uma certa inquietude. À medida que as mãos se enchiam de barro, na inevitabilidade da tentativa-erro, pairava no ar o conselho que me tinham dado meses antes: a importância de não nos apegarmos às peças porque não controlamos o resultado final e o que interessa é o processo. No fundo, tudo se resume ao ato altruísta de nos entregarmos ao barro, sem esperar nada em troca.
Da terracota ao grés, dos potes e jarras feitos com a técnica da bola, às taças na roda de oleiro, passando pelos bules e chávenas coloridas que nascem de moldes pré-definidos, o que importa é sujar as mãos. Sentir o material de que somos feitos e deixar-nos enraizar, com os pés na terra e a cabeça a esvoaçar, inebriados pelo cheiro a erva molhada que nos convida a andar de pés descalços à chuva.
Por falar em raízes, no atelier, conhecemos o ceramista Francisco Correia (@xico_ceramista) que nos deu o workshop da roda de oleiro, nos mostrou as suas maravilhosas e irreverentes peças com silicato de sódio e cristais e ainda nos falou da série documental “Terra: Histórias da Cerâmica”.
Os 8 episódios, disponíveis na RTP Play, levam-nos pelo processo criativo de ceramistas, artistas, artesãos e designers de norte a sul do país. O mais recente, "Aprender Até Morrer”, é dedicado ao processo de aprendizagem do Francisco, num reencontro com o seu mestre oleiro e também poeta, Joaquim Tavares, em São Pedro do Corval. Tivemos ainda a oportunidade de trocar dois dedos de conversa e assistir em primeira mão à produção das peças delicadas e coloridas do ceramista Duarte Galo (@duartegalo_ceramics), que partilhava o atelier com o Francisco e outros artistas que estudaram na ESAD e abraçaram o ofício da cerâmica, independentemente da possível precariedade que, segundo eles, já esteve pior (sendo que hoje já há mais apoios para artesãos do que houve no passado).
De regresso a casa, ainda a mergulhar nos episódios e a procurar alternativas para manter o contacto com este terra-a-terra que nos faz tão bem, penso na descrição da série: “o fascínio pelo barro como matéria plástica, potenciadora de transformação”. Será que isto se aplica a outras áreas da vida? “Do pó nasceste ao pó hás-de voltar”, sussurra-me o inconsciente em associação livre.
Que seremos nós, senão pedaços de barro em constante transformação, entregues à vida para nos moldar? De qualquer forma, sejamos a obra ou o criador, pratiquemos o desapego, com a dose certa de fluidez, consistência e delicadeza que o material nos vai pedindo a cada momento. Porque como nos canta a Joana Espadinha e em jeito de despedida “O material tem sempre razão / Tu tens de ser sincero”.
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