O único festival de cinema universitário em Portugal consegue uma dimensão internacional invejável (77 países), apesar da escassez de recursos e assenta exclusivamente em trabalho voluntário.
por João Maria França Martins, coordenador do CINENOVA e estudante no mestrado de Ciências da Comunicação- Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias na NOVA FCSH
As dificuldades de financiamento de projetos culturais em Portugal constituem um problema crónico, certo e sabido por todos, porém muitas vezes ignorado – ou convenientemente esquecido. Há determinados factos incontornáveis que são bastante elucidativos caso sejam trazidos para este debate pois, tal como se diz, “Contra factos não há argumentos”.
Por um lado, é fundamental atender ao Orçamento do Estado (OE) para 2020. Deste, apenas 0,55%, repito, uns miseráveis 0,55% são destinados à tutela da Cultura. Tal materializa-se em 523,4 milhões de euros, sendo que, deste valor, mais de metade (55,4%) se destina à RTP, através da contribuição para a comunicação social. Isto significa que o financiamento em Portugal para o apoio ao Teatro, Música, Dança, Cinema, entre muitas outras atividades que envolvem a promoção e criação artística, ronda os 230 milhões de euros. Um valor evidentemente irrisório, se considerarmos que no mesmo OE mais de mil milhões de euros foram alocados para o Novo Banco.
Por outro lado, urge relembrar que o investimento do Estado no setor cultural não é uma mera reivindicação ideológica ou um capricho de uma parcela dita intelectual da sociedade portuguesa. É uma obrigação constitucional, expressamente patente na mais importante de todas as leis da nossa democracia. Portugal entra, deste modo, nesta enorme contradição de reconhecer a importância do acesso à cultura e de constitucionalmente encarregar o Estado de o promover, ao mesmo tempo que estruturalmente (sim, este não é um problema do governo cor de laranja ou do governo cor de rosa) subfinancia um setor vital tanto para a democracia como para a nossa existência enquanto país.
Para além de se apresentar legalmente como um direito fundamental, a Cultura é, antes de mais, uma necessidade intrínseca à nossa experiência do mundo. Muitos debates já foram feitos sobre aquilo que distingue verdadeiramente a Humanidade dos restantes seres vivos e a palavra Cultura está constantemente presente nos mesmos. O que nos caracteriza verdadeiramente é termos uma experiência mediada do mundo, isto é, o sermos “construtores de mundo”, remetendo para o conceito de Martin Heidegger.
A etimologia da palavra “cultura” está intimamente ligada à palavra “cuidar”, uma vez que a cultura consiste nesse cuidar, aliás num modo de cuidar que é transmitido de geração em geração. Não é por acaso, como nos relembra Hannah Arendt, que a primeira forma de cultura foi a agricultura, nesta tipologia de cuidar tão essencial à nossa sobrevivência e tão característica da nossa posição no planeta. A cultura surge assim como este movimento indispensável ao ser humano para compreender o mundo, ou melhor, para se compreender no mundo. É nela onde temos um espaço de reflexão da nossa vivência coletiva ou individual. A Cultura, bem como a Arte, não só reflete um certo modo de ver o mundo, como é ela própria o lugar onde se reflete o mundo. Seja um poema, seja um quadro, seja um livro, seja uma música ou seja uma escultura, tudo isto são formas de arte que nos mostram o mundo, que nos demonstram um certo mundo e que nos permitem a contemplação tão necessária à sua compreensão. E é através de uma noção estética de sensibilidade que se constituem os projetos ético-políticos, fomentando a noção kantiana de comunidade, ou se preferirmos, de sensus communis.
O cinema tem particular relevância nesta ótica, se atendermos ao facto de que o cinema é a única arte que junta todas as artes. O cinema é música, é pintura, é teatro, é dança, é arquitetura, é literatura tudo junto. É a interdisciplinaridade artística evidente no cinema que permite que este seja a sétima arte (Ricciotto Canudo). O cinema é a única arte, como defende o incontornável Walter Benjamin, através da qual se pode compreender o que é ser moderno, o que é viver na modernidade tão estimulante em que vivemos.
E é precisamente pela consciência da importância da cultura, nomeadamente do papel do cinema nos dias de hoje, que um conjunto de estudantes decidiu pôr mãos à obra e realizar um festival de cinema, o CINENOVA, feito apenas com filmes universitários de todo o mundo. Apesar das inúmeras dificuldades de conseguir financiamento no setor da Cultura em Portugal, os seus organizadores foram capazes de as ultrapassar e de fazer acontecer – com o apoio imprescindível da Universidade Nova de Lisboa – um novo festival cinematográfico no país, para um público que ainda não estava tipificado. Conseguiram re-conectar o contexto universitário com a produção cinematográfica, arranjar um espaço de reflexão sobre o futuro do cinema, tendo como intervenientes os próprios atores desse futuro.
O CINENOVA quebrou fronteiras. Não só as que separam ainda o universo do Cinema e o mundo do Conhecimento, mas também as de Portugal. O festival recebe 800 filmes oriundos de mais de 77 países, numa geografia tão vasta, desde o Chile ao Egito, ou da Austrália à Roménia. O top 5 de países que mais submeteram foram Portugal, Brasil, Irão e Rússia (ex aequo), Índia e Estados Unidos da América. Envolveram-se na organização do festival, para além da maioria de estudantes da NOVA FCSH, membros de outras faculdades. O branding do CINENOVA foi feito por alunos da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, os troféus foram elaborados por estudantes da ESAD das Caldas da Rainha e houve também o envolvimento de universitários da Escola Superior de Teatro e Cinema. O CINENOVA recebeu também o apoio de universos tão distintos, desde a Cinemateca, à Câmara Municipal de Lisboa, à Zomato, bem como a inúmeras outras marcas dos mais diversos setores. A Antena 3 e a Revista Sábado configuram-se como Media Partners do festival.
Não obstante o que se possa escrever sobre o tema, o que é certo é que um conjunto de estudantes conseguiu, com recursos muito escassos, criar um festival de cinema com um impacto internacional invejável, com um júri prestigiado, integrado por realizadores, investigadores, professores ligados também a outros festivais de cinema de renome.
O CINENOVA tem a cerimónia de abertura na Cinemateca Portuguesa dia 4 de março e realiza-se entre 5 e 7 de março na NOVA FCSH. Serão exibidas as duas mostras a concurso (portuguesa e internacional) e terão lugar diversas masterclasses, debates, workshops, bem como a CINENOVA Opening Party.
Seja milagre, seja sorte, vê-se nesta futura geração um claro desejo pelo investimento na cultura. Será que o grito pela cultura que se ouvirá na Av. de Berna chegará aos ouvidos de decisores políticos? Esperemos que o próximo“CORTA!” seja na rodagem e não na promoção da cultura.
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