A introdução da CNN Portugal funciona como a cereja no topo deste bolo. Já não bastava que a maioria da nossa imprensa generalista replicasse o modelo americano de comunicação, agora trazemo-lo para o Mosteiro dos Jerónimos enquanto falamos dos Descobrimentos.
Texto de João Moreira da Silva
Em pleno Mosteiro dos Jerónimos, perante uma sala cheia de pessoas importantes, incluindo o Presidente da República e o Primeiro-Ministro, Rani Baad inaugurou as hostilidades da apresentação do mais recente canal na televisão portuguesa. O presidente da divisão comercial da CNN Worldwide afirmou com grande pompa que os valores de “descoberta e busca pelo desconhecido” têm sido um “guia para os portugueses há mais de 500 anos, que deram origem a um grande país e cultura.” Relembrou que Vasco da Gama rezou naquele mesmo mosteiro antes de “partir rumo ao desconhecido” e “descobrir o caminho para a Índia.” No final, a audiência aplaudiu. Talvez as 100 milhões de pessoas que viviam na Índia em 1500 discordassem de que habitavam num mundo desconhecido, mas pouco importa - tratou-se de um discurso adequado ao ano de inauguração dos Jerónimos. D. Manuel I ficaria orgulhoso.
Assistimos assim ao antigo Império a ajoelhar-se perante o novo, ambos convencidos da sua respetiva grandeza cultural. De um lado, os saudosistas do Império Português que (ainda) se guiam pelos valores de descoberta, emocionados quando se lembram de que em tempos o seu país se expandia para o desconhecido. Do outro lado, os atuais expansionistas norte-americanos. Passados mais de 500 anos, o vocabulário da expansão já não é o mesmo. Antes, falava-se em missões civilizadoras e em descobrir novos mundos. Agora, fala-se em liberdade, justiça e democracia. Todos chavões vagos, (quase) consensualmente aceites pelas populações das respetivas épocas, nos respetivos países de origem. Apesar de a violência não ser a mesma, a ocupação física de territórios e dizimação de populações ainda existe - em particular no Sul Global (relembremos os casos de Israel, Afeganistão ou Iraque). No Norte Global, esta tende a ser substituída por métodos de controlo mais subtis, através da criação de esferas de influências - o chamado imperialismo cultural. Chegamos assim à CNN Portugal.
Quando pensamos em esferas de influências, em particular em países com acesso generalizado a televisões e internet, os mass media são um dos melhores meios para propagar informação. A televisão continua a ser o meio predileto para chegar ao máximo de pessoas possível - afinal de contas, o arranque da CNN reuniu 1,4 milhões de pessoas à frente das suas televisões. Estamos a falar de mais de 10% da população portuguesa. Claro que este foi um dia excecional para a CNN; ainda assim, o Jornal da Noite da SIC de dia 22 de novembro reuniu 1 milhão e 222 mil espetadores. Ao longo de 2020, as emissões em sinal aberto - RTP, SIC, TVI - cresceram em audiência na ordem dos 15,6%, com uma média diária de 1 milhão e 139 mil espetadores. Comparando com os números dos jornais físicos - os 60 mil exemplares diários vendidos pelo Correio da Manhã, ou os 13 mil exemplares do Jornal Público (no período entre Janeiro e Setembro de 2020) -, verificamos facilmente que a televisão domina a comunicação impressa. Mesmo na competição com sites de notícias - nos quais o Público se sagrou vencedor em 2020 -, os números da televisão continuam a ganhar.
Concluídas as apresentações dos números e a parte chata da apresentação, cabe regressar ao ponto fulcral da crónica. A televisão tem um grande poder em Portugal. Os temas e abordagens escolhidos pelos jornalistas moldarão a narrativa sobre os assuntos do momento. Cada escolha, cada detalhe, tem poder para condicionar o espetador e, por sua vez, o próprio país. No entanto, nem tudo depende da vontade do próprio jornalista, mas sim de um sistema muito maior do que qualquer indivíduo. Na obra Manufacturing Consent, Chomsky e Herman elaboraram um “modelo de propaganda”, no qual explicam o porquê de os mass media funcionarem como meros “fabricadores de consentimento” na sociedade contemporânea. Segundo os autores, os mass media vivem condicionados por determinados fatores - as empresas que detêm os meios de comunicação; a publicidade que sustenta os media; a cumplicidade entre a elite do país e consequente desacreditação de histórias inconvenientes ao establishment; e, por fim, o inimigo comum - seja o comunismo, o terrorismo, os “extremistas”, ou os imigrantes.
Deparamo-nos, assim, com uma conclusão extremamente desagradável - este modelo nunca nos levará a ter uma verdadeira imprensa livre; uma imprensa que questione o poder estabelecido, que funcione como o famoso “quarto pilar da democracia.” Em Portugal, todos os condicionamentos elencados por Chomsky e Herman estão vivos e de boa saúde. Todos estamos familiarizados com as empresas que concentram entre si os grandes canais de televisão e jornais. Por outro lado, a convivência entre a classe política e jornalística é evidente. Todos se sentam nos mesmos restaurantes; vão às mesmas festas; cruzam-se nos mesmos bairros. A cumplicidade é evidente; assim como o inimigo comum, que vai mudando consoante a “cor” do meio de comunicação.
A introdução da CNN Portugal funciona como a cereja no topo deste bolo. Já não bastava que a maioria da nossa imprensa generalista replicasse o modelo americano de comunicação, agora trazemo-lo para o Mosteiro dos Jerónimos enquanto falamos dos Descobrimentos. Na maioria dos artigos de política internacional dos media portugueses deveria ser obrigatório constar a frase “our source was the New York Times” (ou CNN, ou Fox News, ou por aí em diante). A entrada de um canal norte-americano nas casas dos portugueses vem apenas formalizar esta influência que já dura há muitos anos. Consigo, traz a cultura de um país no qual seis empresas controlam 90% dos media. Trata-se de um verdadeiro processo de media imperialism - a dominação da esfera de informação de um país por outro. Se já não bastassem todos os condicionamentos que o jornalismo português enfrenta, assistimos agora à entrada de um novo ator chamado Uncle Sam.
Perante este deslumbramento com o modelo norte-americano de comunicação (que, como se vê pelo estado de coisas nos EUA, não tem oferecido grandes resultados), penso que só nos resta mudar o canal de televisão. Porque se é verdade que a televisão continua a manter uma grande influência em Portugal, também é verdade que assistimos a um crescimento de plataforma de media independentes - como esta, o Jornal Crónico. Ao escrever para esta plataforma, não tenho de me preocupar com a empresa que me detém. Trata-se de um modelo mais genuíno de comunicação. Quem me lê, sabe que me está a ler a mim - não à empresa X ou ao país Y. Ninguém está livre de influências, mas o importante é sermos transparentes quanto a elas. Não consigo confiar num órgão de comunicação que se afirma imparcial, objetivo e livre. A escolha da informação é em si um ato subjetivo. Apostemos nos órgãos de comunicação que são transparentes na sua subjetividade, que agitam o sistema, que fazem perguntas e observações desconfortáveis. Deixemos os Impérios para trás.
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