A quarentena está a dar-nos imensas lições sobre Abril. Sobre como valorizamos as nossas liberdades, sobre as elites que construímos no pós-Revolução e sobre o respeito que temos pela Democracia.
Texto de João Maria Jonet
Licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais, NOVA-FCSH
É uma altura estranha para celebrar o Dia da Liberdade. Por outro lado parece a altura ideal. Estamos limitados pelo Estado como nunca estivemos desde que a Revolução foi feita, por outro lado as garantias conquistadas nesse dia permite-nos estar tranquilos de que a coisa não se eternizará.
Tal como há 46 anos, não podemos abrir os nossos negócios, mas agora a proibição não é para impedir que um grande grupo económico tenha um novo concorrente, mas para impedir que um maldito vírus arranje mais clientes.
Tal como há 46 anos, as janelas enchem-se de moralistas que julgam os seus concidadãos e, por vezes, denunciam às autoridades comportamentos mais questionáveis, substituindo-se um encontro com um amigo à leitura de Lenin. Tal como há 46 anos, a DGS paira no nosso imaginário coletivo, na altura enchendo-nos de medo agora tentando acalmar-nos.
Tal como há 46 anos estamos presos, mas em vez de estarmos por opção em casa para protegermos os mais vulneráveis, estávamos forçados a estar sempre calados para proteger os mais poderosos.
Tal como há 46 anos, quem tem menos viu-se privado de acesso à educação, mas em vez de ser por não haver interesse do Estado em ensinar, será mais porque não se conseguiu ainda uniformizar o acesso à televisão e à internet (apesar de atualmente haver efetivamente esforços para ligar o País, mesmo que envolvam projetos falhados a evocar circunavegações ao Planeta).
Tal como há 46 anos, passa-se fome por não se conseguir ganhar dinheiro para comer, mas isto também será porque o Governo nos faz ficar em casa e não porque ele não nos permite procurar uma vida melhor no estrangeiro ou negociar melhores condições através de concertação social.
Tal como há 46 anos, é difícil criticar as orientações políticas do Governo. Não por causa da ação limitativa do executivo, mas porque os tais moralistas da janela são também os dos telejornais, que, das suas torres de marfim, decidem quem são os puros e os impuros deste período. Que medidas é que estão certas e quais é que são irresponsáveis. Sempre com as prioridades direcionadas para o seu umbigo e não para as necessidades de quem sofre desmesuradamente nesta altura. Para os evangelistas da cura da pandemia (estejam em posições de poder e influência ou não), não interessará falar das vítimas dessa mesma cura. Para esses evangelistas não há normalidade que seja aceitável, enquanto eles não se sentirem seguros. Assim, há de novo uma elite que procura controlar o pensamento, mas funciona à revelia do Governo, em vez de sob as suas ordens, ajudando na sua descredibilização com polémicas fabricadas à volta de sessões solenes absolutamente inócuas.
Tal como há 46 anos, a greve é proibida, mas, nesta medida, não consigo mesmo fazer a distinção das épocas, pois a motivação parece parecida.
A quarentena está a dar-nos imensas lições sobre Abril. Sobre como valorizamos as nossas liberdades, sobre as elites que construímos no pós-Revolução e sobre o respeito que temos pela Democracia. Todas nos devem deixar a pensar. Porque é que ainda nos chamamos fachos e comunas? Porque é que ainda estamos a discutir se a Revolução pertence à esquerda ou a todos? Claro que pertence a todos! A liberdade é parte fundamental do credo de todo o espectro político, menos dos extremos, que não são bem-vindos. Por isso, uns foram expulsos naquele dia de Primavera e outros no fim do processo que começou nesse dia, numa manhã de Outono um ano e meio depois. Tudo isto foi o 25 de Abril, um processo cuja conclusão pode até ainda estar para vir.
Chega de culpar, neste dia, as nossas frustrações pessoais ou familiares. Chega de olhar para o Dia da Liberdade como mais do que isso. É um conceito que já nos devia encher as medidas, sem ser preciso vir falar das nacionalizações do PREC ou das terríveis experiências dos retornados. Isso não são coisas para culpar no dia em que nos livrámos de um regime opressor, são coisas para culpar na gestão danosa desse mesmo regime. Um regime que se recusou a gerir um processo de descolonização, de forma séria e realista, provocando anos de guerras, mortes e, por fim, uma enorme crise de refugiados. Um regime que existia por e para enriquecer grandes grupos económicos, cultivando desigualdades à base da gestão iliberal da economia, que resultaram numa resposta violenta contra esse grupo de privilegiados.
25 de Abril é um dia engraçado para refletir publicamente sobre estes assuntos, porque só o podemos fazer por ser o dia que é. Encontro poucas coisas na vida tão simplesmente bonitas como isso. Resta-me desejar que nunca mais seja preciso sair à rua de G3 (com ou sem cravos no cano, uma ou mais vezes) para garantir estas liberdades.
25 de Abril Sempre!
Fascismo Nunca Mais!
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