O culto ao impossível é um problema Crónico – e a nossa geração está condenada se abandonar causas por serem catalogadas como impossíveis.
Na semana passada, entre amigos, afirmei que concordo com o fim da propina no ensino universitário de forma a garantir que ninguém vê a oportunidade de estudar vedada por motivos económicos.
Fui imediatamente acusado de ser um irresponsável e caíram as críticas: “Isso é impossível, como é que o Estado vai ter dinheiro para sustentar as instituições de Ensino Superior sem as propinas?”, disseram os meus amigos.
Recuamos mais de 100 anos. Em 1906, no intervalo do trabalho numa fábrica em Inglaterra, um trabalhador resolveu dizer que concordava com o estabelecimento de um salário mínimo nacional de forma a reduzir a desigualdade.
O trabalhador foi imediatamente acusado de ser um irresponsável e caíram as críticas: “Isso é impossível, como é que o nosso Estado é capaz de garantir um salário mínimo nacional sem provocar a falência das empresas?”, disseram os seus colegas.
Recuamos mais uns anos: estamos em 1856, nos Estados Unidos. Um homem resolveu dizer que concordava com a abolição do trabalho escravo, de forma a garantir que todos os Homens são livres e iguais.
O homem foi imediatamente acusado de ser um irresponsável e caíram as críticas: “Isso é impossível, como é que o Estado vai conseguir manter a sua produtividade sem trabalho escravo?”, disseram-lhe.
Seria uma falta de respeito pela história atrever-me a comparar os três temas: logicamente que a importância da abolição do trabalho escravo se sobrepõe a qualquer outro dos dois assuntos, na medida em que a liberdade do indivíduo é um pressuposto para estudar e receber salários.
A única comparação que vou fazer prende-se com algumas das críticas que enfrentaram - as três conversas deram-se em momentos distintos, com contextos históricos e sujeitos diferentes, mas mantendo uma característica: o culto ao impossível.
O culto ao impossível manifesta-se particularmente quando se trata de reivindicações de grupos mais frágeis, face a outras partes mais poderosas. Os mais frágeis vão reivindicar direitos para si, enquanto os mais fortes vão contra-argumentar através da criação de impossibilidades para as pretensões dos primeiros, justificadas através dos “costumes sociais”, da “visão dos governantes” ou dos “interesses do Estado”.
Não será surpreendente os mais fortes criarem entraves às pretensões dos mais fracos pois serão os principais prejudicados caso estas se verifiquem. Terão de pagar mais salários, dar mais dias de férias ou até tornar a pessoa livre. Como sabemos, tal pode ser um problema para os lucros da empresa.
O problema, na minha opinião, não se prende com a mera oposição a estas ideias – não considero que a propina zero seja uma verdade absoluta sem qualquer hipótese de contra-argumentação. Pelo contrário, há certamente muitos contras. O problema está na repressão dos movimentos através da catalogação como “impossíveis”. Este selo de impossibilidade que estampam nos movimentos reivindicativos são uma tentativa de condená-los ao fracasso sem se debater de facto a ideia. Traduz-se em condená-la ao fracasso sem sequer trazer o seu conteúdo à discussão.
Como sabemos, o selo de impossibilidade também se traduz muitas vezes nas “questões orçamentais do Estado”. Quanto a esta questão, certamente não caberá aos manifestantes elaborar o Orçamento de Estado, mas sim ao Governo. Se os manifestantes, nas suas reivindicações, se colocarem na pele de um governante, terão seguramente maior consciência da probabilidade de sucesso das pretensões. No entanto, este exercício de se colocarem nos pés de quem gere o Estado também pode ter efeitos nefastos, nomeadamente o de moderarem as suas reivindicações em prol de uma baixa probabilidade de sucesso de aprovação das suas pretensões. Esta questão pode traduzir-se no seguinte exemplo: exige-se uma redução da propina para 600€ em vez da abolição da mesma, partindo do pressuposto que a probabilidade de aprovação da medida por parte do Ministério da Educação é maior. O Ministro agradece. O culto ao impossível é, assim, bem sucedido: nunca foi a pretensão destes manifestantes a redução para 600€, mas sim para zero euros – apenas se conformaram após lhes ser estampado o selo da impossibilidade, fazendo o favor à parte forte de se esquecerem das suas reivindicações originais.
Acredito que os manifestantes devem fazer um exercício de abstração do que está escrito nas leis, do que é o Estado e do que são os costumes sociais, de forma a evitar conformarem-se com o selo da impossibilidade. Se não o fizerem, estão condenados a limitar as suas pretensões à vontade do Estado - que nem sempre é a correta. No entanto, este exercício de abstração deve ser realizado com respeito: fantasiar sobre a inexistência de leis não se traduz numa prática anárquica, mas sim num exercício de pensamento, que passa por colocar a orientação das leis à disposição do ser humano e não o ser humano à disposição das leis. Para surpresa de muitos, o legislador pode estar enganado e produzir desigualdades.
Não sendo o Estado uma entidade distante que ignora propositadamente as necessidades da população, nem sempre a sua função de estar atento a todas as necessidades dos indivíduos é realizado com sucesso. Assim, o direito à liberdade de expressão e de pensamento deve ser exercido para transmitir ao Estado as necessidades da população. Se todos se tornarem totalmente inertes e se fiarem a 100% na ação do Estado, arriscam-se a deixar a resolução dos problemas entregues a um autêntico jogo de sorte e timing político.
Face a isto, parece-me fazer todo o sentido que os trabalhadores pugnem por melhores condições de trabalho, que os estudantes lutem pelo acesso universal ao Ensino Superior, que as minorias étnicas se revoltem contra a segregação e que os escravos reivindiquem a sua liberdade - sem filtros. Se não o fizerem, não haverá mudança. Se o fizerem de forma ajustada aos interesses da entidade que os está a prejudicar, não só se coloca um cenário altamente contraditório, como contraproducente.
Que se façam claras as pretensões de cada um. Mas atenção - não significa que todas se cumpram. pois vivemos organizados em sociedade e se as pretensões de todos forem atendidas, não serão atendidas as pretensões de ninguém. Acredito, porém, que a combinação da existência de uma verdadeira necessidade por atender, conjugada com a vontade popular, é suficiente para provocar a mudança. Afinal de contas, o povo é quem mais ordena.
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