Faz hoje uma semana que soubemos qual seria a nova composição do Parlamento. Muita tinta correu (e vai correr) sobre os “porquês” e “comos” desta nova arquitetura política. Sendo assim, não irei maçar ninguém com isso por agora, até porque não tenho nenhuma resposta concreta para dar.
de Francisco Lemos Araújo
Entre campanha e pré-campanha, devemos ter gasto mais de metade do tempo a discutir temas atualíssimos, como a prisão perpétua, a atirar pedras para o outro lado da barricada sem ninguém querer ouvir a resposta que era dada. Na verdade, tivemos debates de surdos, para cumprir calendário, e ainda atirámos os animais de estimação para o meio para tornar a coisa cute, porque discutir ideias não é nada atrativo.
A outra metade do tempo foi passada a discutir a governabilidade. O que não deixa de ser irónico, pois chegamos ao fim e não há qualquer questão relativamente à governabilidade do país.
Por estas razões, farei um exercício que deveria ter sido feito durante a campanha e que quase ninguém foi capaz de levar a cabo: analisar algumas das propostas daquela que é a terceira força política no Parlamento. Bem sei que é algo ousado da minha parte, contudo, já que fomos incapazes de os escrutinar antes de serem eleitos, acho que o mínimo exigido é fazê-lo agora, que têm 12 deputados sentados no hemiciclo.
Não me consigo meter na cabeça de alguém que vota no Chega, porque não consigo conceber ir votar num partido que é um autêntico deserto de ideias, um projeto pessoal de poder do seu líder e vive de um autêntico culto do chefe, cuja única ideologia política seguida é o tachismo. Um partido cujo presidente-líder-guru, que acha que foi enviado por uma entidade superior para salvar Portugal, muda de opiniões como quem muda de cuecas, identifica os desprotegidos e explora a sua situação de fragilidade para ganhos políticos, e vai atrás do que acha que lhe vai dar mais votos. Ao contrário do que defendem, André Ventura não diz as verdades que muita gente não tem coragem de dizer. Diz as mentiras que sabe que podem colar.
Ainda assim, aqui vai o meu contributo. As propostas que se seguem foram retiradas das 100 medidas de Governo que o Chega apresentou a estas eleições, sendo que existem também como referência as 9 páginas do programa eleitoral apresentado, o qual poderá ler rapidamente.
Na secção de “Educação e Família”, é dito que se pretende “garantir uma política de Ensino de qualidade para todos os jovens portugueses, convocando para essa missão não só os próprios alunos bem como os respectivos encarregados de educação, o profissional docente e não docente dos estabelecimentos de ensino e a própria sociedade civil” (ponto 3). Mas como pretendem fazer isto? Não dizem. E chamo a atenção para a exclusividade da medida a “todos os jovens portugueses”.
No ponto 8, dentro da mesma secção, defendem a “proibição da propaganda da agenda LGBTI no sistema de ensino português com o fim da aplicação das ideologias de inclusão e ideologia de género no sistema nacional de ensino”. Em 2022?
Na saúde querem a “redefinição dos critérios temporais para consultas e actos cirúrgicos, devendo o Estado comparticipar, quando necessário, estes actos no setor privado e ou social” (ponto 25). Os critérios temporais encontram-se legalmente definidos, pelo que se poderia ter apresentado uma estratégia concreta. É que a redefinição poderá ser no sentido da diminuição (que acredito ser a ideia original), mas também do aumento.
Na área da Justiça, sem querer falar dos pontos mais badalados relativos à prisão perpétua e a castração química, quer-se “promover a reforma das estruturas de investigação criminal, dos tribunais administrativos e fiscais (TAF) e da codificação administrativa e tributária” (ponto 41). Com isto pretende-se mexer nas competências atribuídas aos órgãos de investigação, na sua orgânica, nos poderes atribuídos, ou em tudo? Na codificação administrativa e tributária, estamos a falar de alterações em prazos processuais, nas fases do processo ou noutros pontos? O que se pretende em concreto e de que forma pretendem fazer esta reforma?
Para a Economia, no ponto 59, defendem querer “combater as desigualdades de oportunidades que separam os cidadãos das áreas rurais e urbanas, promovendo apoios tributários para a Indústria e Comércio nas zonas rurais e do interior do país”. Que apoios? Diretos ou indiretos? Falamos de redução ou isenções de impostos ou de atribuição de quantias a quem se decidir fixar no interior?
Para as Relações Internacionais e Imigração, existe uma irreal ideia de fechamento de Portugal e que sozinhos teríamos maior capacidade de responder aos problemas, porém, destaco a pretensão de criar “limites à imigração islâmica devido aos casos de ameaça terrorista e ao conhecido choque cultural” (ponto 76). Com que fundamento?
Defende-se ainda a “atribuição de benefícios fiscais nos primeiros anos de inserção no mercado de trabalho” (ponto 94). Certo. Mas pretendem isenções de IRS? Se sim, é total ou parcial e por quanto tempo? E tem algum limite? Ou os benefícios estão relacionados com as contribuições para a segurança social?
Estas são algumas das propostas que o Chega apresentou ao país, sendo que relativamente a setores como a cultura ou para a área do ensino superior não existia nada. Em relação a outras medidas, não falamos de meras mudanças legislativas, mas sim de alterações constitucionais.
Muita gente se riu da frase usada por Francisco Rodrigues dos Santos no debate com André Ventura, todavia, a verdade é que é impossível encontrar uma ideia estruturada. Não é apresentado um plano, uma ideia aprofundada para o país do século XXI. Hoje é uma coisa e amanhã outra.
Até 2026 teremos 12 deputados a defender absolutamente nada na Assembleia da República, a não ser aquilo que achem que vá dar votos, recorrendo ao soundbite e baseando-se num discurso racista, xenófobo e homofóbico. Dizem-se da verdadeira direita, impondo-se num espectro político que não quer (ou não devia querer) ter nada a ver com eles. Impõem-se num espaço político do qual não fazem parte, quando, na verdade, não são de espectro político nenhum, fazem apenas parte daquele que não faz falta nenhuma ao país.
Partilhamos a culpa nisto porque desde o seu aparecimento que andámos a brincar. A esquerda sacudiu a água do capote a dizer à direita para tratar do seu problema. A direita quis domesticá-lo e moderá-lo, convencidos de que teriam sucesso usando uma estratégia que não teve resultados positivos em lado nenhum do mundo.
A direita tem de ser a primeira a querer livrar o seu espaço político. Tem de traçar claramente a linha, porque não é possível sequer pensar em negociar com quem vive numa realidade paralela àquela em que estamos em 2022. Mas a esquerda não pode deixar a direita à sua sorte. Com 12 deputados sentados no hemiciclo, existe a oportunidade de expor sistematicamente, de forma clara e pedagógica, sem cair no engodo da berraria, a inutilidade do Chega no sistema político nacional. Não a desperdicemos.
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