As doenças do foro psicológico são frequentemente vistas pela sociedade atual como o reflexo de desordem pessoal/emocional e fraqueza, o que consequentemente cria um ambiente de medo e silêncio, que afeta negativamente vários domínios da vida das pessoas.
Crónica de Marta Dias
Estudante de Política e Relações Internacionais, Lancaster University
O sol da manhã nascia iluminando todas as caras que por ali passavam, especialmente as sonolentas que levavam os olhos entreabertos no caminho para a escola. Com a cabeça encostada à janela na direção do sol, ficava a ver as caras passarem por mim como num plano de um filme. Eles atravessavam a rua de mãos dadas. Uma vez por dia, à mesma hora, lá iam eles, sempre de mãos dadas. Por um instante, era-me dado um vislumbre da vida de outros. Havia algo reconfortante em vê-los passar, talvez pela segurança que me ofereciam ao perceber que aquele seria mais um dia normal.
Ao contrário do conforto desses momentos, os dias de hoje são marcados por incertezas. A palavra “normalidade” foi levada pela pandemia trazendo consigo muitas dúvidas e sentimentos de angústia, perda e solidão – emoções essas muitas vezes vividas em silêncio. A conjuntura atual leva a um agravamento de tais sentimentos e sintomas, contudo podemos afirmar que esta é uma realidade presente num mundo com ou sem pandemia. No essencial, esta situação expõe parte do problema quando falamos sobre perturbações mentais: a sua (in)visibilidade. Ainda assim, ao olharmos para alguns indicadores rapidamente compreendemos que a saúde mental é um assunto que toca a todos: a nível global, as estatísticas revelam que a depressão é uma condição que afeta mais de 264 milhões de pessoas. Adicionalmente, as estatísticas portuguesas apontam para Portugal como o segundo país europeu com maior número de doenças psiquiátricas.
Embora o tema da saúde mental esteja cada vez mais presente nos debates da esfera pública, a luta contra o estigma persiste, prolongando-se além desta pandemia. As doenças do foro psicológico são frequentemente vistas pela sociedade atual como o reflexo de desordem pessoal/emocional e fraqueza, o que consequentemente cria um ambiente de medo e silêncio, que afeta negativamente vários domínios da vida das pessoas. A falta de sensibilização e estereótipos produzidos repercutem-se, em particular, no processo de tratamento dos próprios doentes. A respeito deste assunto, destaco: o atraso da procura de cuidados de saúde; a falta de investimento e acesso a serviços especializados no Sistema Nacional de Saúde; e a exclusão de consultas de acompanhamento psicológico nos planos de seguro de saúde.
Por fim, é necessário relembrar que não existe nenhum critério. A dor não escolhe idade, género, cor de pele e certamente não escolhe momentos. Hoje pode ser um dia normal, o amanhã pode ser marcado por incertezas.
Resta-nos uma alternativa: a escolha de ir de mãos dadas tal como faziam aqueles que passavam por mim todas as manhãs no caminho para a escola. Resta olharmos por nós e por aqueles que nos rodeiam. Compreender a complexidade da saúde, ter compaixão pelo próximo e desafiar o estigma.
Ao baterem as doze badaladas de 31 de Dezembro de 2020, voltei a encostar a cabeça à janela. Comi as doze passas e sonhei. Sonhei com dias mais serenos onde todos possamos voltar a estar rodeados de família e amigos. Sonhei em visitar novos lugares, e ver novas caras passarem de mãos dadas. Sobretudo, sonhei com aqueles que vivem em sofrimento. Desejei que não vivessem no silêncio e que fossem abraçados com palavras enquanto os nossos braços não se puderem tocar. No final, sonhei que não ficasse nada por dizer.
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