Por isso faço a pergunta: Do que vale, o que vale? Durante toda a minha infância recebi presentes que valiam muito de pessoas que valem muito para mim, mas por alguma razão não foram esses que ficaram.
Crónica de Tiago Pombeiro
Em criança, como muitos outros, tinha a rotina de ler uma história, rezar um “Pai nosso” e cama. A altura de escolher o livro era para mim sempre um momento de stress, como se a qualidade do sono e dos sonhos dependesse da escolha certa.
Hoje, ainda tenho muitos dos livros que me foram lidos algures em casa, mas só um no meu quarto. Chama-se “Meu livro de histórias bíblicas”, editado em 1978 por uma editora Jeová. Desengane-se quem acha quem acha que passei por uma espécie de doutrinação levada a cabo pelos meus pais. Tendo os dois sido criados apostólica e romanamente, não eram promotores desta visão de Deus.
Porque tinha eu então uma adaptação jeovânica de uma bíblia para crianças? Na altura, a minha família tinha contratado um senhor chamado Dino para levar a minha irmã e as minhas primas mais velhas às suas danças e ginásticas. O senhor Dino simpaticamente ofereceu o livro à minha irmã como presente de anos, o que quase que imediatamente o condenou como inútil para brincadeiras, o que honestamente não se pode levar a mal vindo de uma menina saudável que o que quer é barbies e não a palavra de Deus.
Os anos passaram, e numa das azáfamas de escolher qual o livro para ler antes de ir dormir, uma capa dourada chamou-me à atenção, era o tal livro. A meu ver, as histórias eram boas, “Gigantes na Terra” falava no anjo mau, Satanás outrora o mais fiel seguidor de Jeová, que dele tinha inveja e por isso decidiu descer à Terra e casar com mulheres. Desses perversos matrimónios tinham saído gigantes que maltratavam tudo e todos. O facto de uma história destas estar numa bíblia acrescentava um lado verdadeiro ao que eu compreendia ser ficção, daí ser tão boa.
Para quem não está a par da visão jeovânica do mundo, que suponho ser a maioria dos leitores deste texto, Deus surge como uma entidade dura, que castiga e não perdoa muitas vezes. Um pouco à semelhança da imagem que o primeiro testamento às vezes nos passa de Deus. O reflexo deste facto no livro eram as ilustrações. Por exemplo, Abel aparecia rodeado pelo seu próprio sangue e um machado enquanto Caim se afastava. Abraão com um facalhão encostado ao pescoço do seu filho Isaque, entre outros. Este cunho na religião era claramente diferente do da minha catequese o que me despertava a maior das curiosidades. Assim, passou a ser o meu livro predileto.
Os anos passaram, e o livro foi ficando mais vezes na prateleira até que inevitavelmente deixou de ser escolhido. No entanto, curiosamente ganhei uma enorme afinidade por este. Não pelo conteúdo obviamente, não por quem o ofereceu (nunca cheguei sequer a ver o Sr.Dino), mas porque de alguma maneira sempre esteve não mais do que a 3 metros do sítio onde eu durmo.
Por isso faço a pergunta: Do que vale, o que vale? Durante toda a minha infância recebi presentes que valiam muito de pessoas que valem muito para mim, mas por alguma razão não foram esses que ficaram. Por alguma razão, o presente que o Sr Dino deu à minha irmã, completamente disconexo do tipo de educação que recebi e completamente despropositado de interesse para uma criança, é talvez o livro que eu sinto mais me pertencer. De alguma maneira ou de outra, acredito que todos nós temos alguma coisa a que atribuímos muito mais valor do que aquele que lhe é intrínseco. Vale a pena lembrarmo-nos dela de vez em quando.
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