de Inês Moreira
Caída de paraquedas na Sicília para um projeto do Corpo Europeu de Solidariedade, conheço o Andrea, italiano de Teramo, na azáfama da rodoviária de Palermo (sim, Andrea, nome masculino), e digo-lhe que devorei a trilogia do Padrinho antes de partir em viagem, ao qual me responde «não fales muito sobre isso, fica atenta, hás de perceber». Apesar de estar minimamente consciente do tabu, o suspense da resposta intrigou-me. Não imaginava o peso do assunto. Habituámo-nos a romantizar a máfia, particularmente a que rumou aos EUA, retratada em grandes filmes e séries como Godfather e Sopranos, de tal modo que a realidade ficou confinada à margem do nosso interesse.
E que realidade.
Inicialmente, Palermo causa uma impressão rude, de uma Itália em decadência, suja, mas interessante, uma cidade doente, mas viva, capaz de incendiar uma faísca qualquer, como que prelúdio de um interesse maior. Facilmente repele quem não ousa aprofundar o olhar. Fiquei atenta.
Normalmente gosto de fotografar os sítios por onde passo. Em Palermo, houve algo de diferente. Sempre que pegava na máquina, hesitava e quase sempre voltava a guardá-la, por receio de perder algum estímulo. Fotografar nunca me pareceu suficiente, por um lado, por sentir que nunca chegaria perto de captar a verdadeira essência, por outro, pela urgência que sentia em mergulhar de pés e cabeça no compasso da cidade.
E assim fiz.
Descobri mais tarde que existe uma palavra do sul de Itália - omertà - que traduz este silêncio carregado, do que se sabe e não se fala, do que se sente e não se expressa, um nevoeiro de emoções que paira nesta região e que se esconde por detrás do código de silêncio da Cosa Nostra - máfia siciliana. Um silêncio que me ensurdeceu, ou melhor, que me acordou.
Existem feridas por sarar na alma italiana, feridas que não só são resultado da criminalidade associada à máfia como são também resquícios de períodos negros da história do país, como os famosos “Anos de Chumbo”.
Itália passou por uma grave crise sociopolítica nas décadas de 70 e 80, anos conhecidos como Anni di piombo (Anos de Chumbo), marcados por uma violência extrema, desde assassinatos a ataques terroristas orquestrados por grupos de extrema-direita e extrema-esquerda. Diz-se que o nome deriva da quantidade de tiros disparados durante este período.
Dos acontecimentos que mais chocaram a nação saltam à vista o rapto e assassinato de Aldo Moro, ex-primeiro ministro italiano, a 16 de março de 1978; e o Massacre de Bolonha de 1980, atentado terrorista à estação central de Bolonha que matou dezenas e feriu duas centenas de pessoas.
Tudo começou numa manhã de dezembro de 1969, quando uma bomba explodiu num Banco em Milão. Dezassete pessoas morreram. A partir daí, a violência escalou e manteve-se constante, fazendo com que os “Anos de Chumbo” acabassem por durar cerca de duas décadas. Centenas morreram nos inúmeros ataques. Paralelamente, a criminalidade relacionada com a Máfia ganhava terreno, inclusive dentro da “máquina política”
Muitos são os livros e filmes que retratam fielmente esta época, como é o caso do filme "I cento passi".
I cento passi é um filme italiano lançado em 2000, dirigido por Marco Tullio Giordana, sobre a vida de Peppino Impastato, ativista político que se opôs à Cosa Nostra. A história passa-se na pequena cidade de Cinisi, na província de Palermo, cidade natal da família Impastato.
Cem era o número de passos que separava a casa de Peppino da casa do chefe da máfia, Tano Badalamenti.
O filme conta a história de Peppino, jovem que decide expor a máfia através da criação de uma estação de rádio - Rádio Aut - com os seus amigos. Nesta rádio, condenava a máfia e falava sobre a participação de Don Tano no tráfico de drogas. Peppino trava uma luta destemida durante todo o filme, que acaba por lhe custar a vida.
A máfia orquestrou então a sua morte: amarraram Peppino aos trilhos da ferrovia com TNT e fizeram com que explodisse. Os amigos do ativista exigiram à polícia que considerasse o caso como homicídio, mas a polícia, influenciada pela máfia, deu o caso como ato terrorista e, posteriormente, como suicídio. No seu funeral, uma multidão de civis saiu à rua e, a par com o Partido Comunista e com o apoio dos nossos cravos vermelhos, fizeram-se ouvir pela luta de Peppino contra a Máfia.
O filme faz referência a outras tragédias contemporâneas, como o rapto de Aldo Moro, espelhando o impacto que se fazia notar na vida das pessoas de tudo o que ia acontecendo um pouco por toda a Itália.
Peppino não foi o único que ousou desafiar a Máfia, nem foi, de longe, o mais poderoso.
O juiz Giovanni Falcone e o procurador Paolo Borsellino, figuras máximas do sistema judicial siciliano, conduziram o julgamento que em 1987 condenou 360 elementos da máfia, numa das maiores ações levadas a cabo pela Justiça italiana contra a Cosa Nostra.
Depois de emitidas as condenações do chamado Maxiprocesso di Palermo, Totò Riina, famoso chefe da máfia siciliana, ordenou a dois dos seus homens de confiança que tratassem do assassinato dos dois juízes. Os dois homicídios foram executados com dois meses de diferença.
Primeiro, foi morto o juiz Giovanni Falcone, em maio de 1992. Os mafiosos instalaram um explosivo na autoestrada por onde ia passar o carro do magistrado e a bomba foi detonada à distância. Além do juiz, morreram também a sua mulher e três guarda-costas. Borsellino foi morto dois meses depois, em julho de 1992, num atentado com um carro bomba, carregado com 100 quilogramas de dinamite, numa autoestrada em Palermo.
O assassinato dos dois magistrados fez com que Riina acabasse condenado a prisão perpétua. Este foi um dos casos que contribuiu para que, em 1992, se assistisse à intensificação da luta anti-máfia, que ganhou força no início do milénio. Salvatore Cuffaro, Presidente da Sicília de 2001 a 2008, foi também condenado a sete anos de prisão em 2011 por cumplicidade com a Cosa Nostra.
Houve quem captasse a realidade de Palermo, como Letizia Battaglia, famosa fotojornalista siciliana.
Letizia ficou conhecida por fotografar as ruas de Palermo nas décadas de 1970 e 1980, capturando através da sua câmara Leica a máfia e as suas vítimas. Reuniu ao longo dos anos um tesouro fotográfico composto por 600 mil fotografias que ajudaram a expor a violência que se fazia sentir nas ruas da capital siciliana.
A fotojornalista acabou por falecer no dia 14 de abril, com 87 anos.
As máfias constituem um tema de pesquisa extremamente complexo e ao mesmo tempo crucial para a compreensão do sistema italiano à escala nacional.
Para além dos casos famosos, várias investigações têm desmascarado redes entre o crime organizado e órgãos políticos por toda a Itália. Em termos de política local (administrações regionais e municipais), descobrem-se frequentemente influências da máfia, seja em que latitude for.
No caso particular da Sicília, fui ganhando aos poucos in sight sobre a máfia graças a diálogos que partilhei aqui e ali, absorvendo testemunhos de quem lidou diretamente, ou indiretamente, com o problema.
Um dos diálogos que mais me marcou deu-se num serão de bom vinho siciliano (encontrem o pleonasmo), numa dessas noites de calor difícil de conceber – até mesmo para uma alentejana. O ar sentia-se ardente, arrebatador, quase em advertência da conversa que dali ia nascer.
Sentados à mesa do terraço com vista para uma espécie de Alentejo que corta os céus, escuto um pouco a história do casal à minha frente, ambos de Palermo, que decidiram despedir-se da cidade e rumar juntos a uma pequena vila vizinha da famosa Corleone. “Godfather, film per bambini”, ouço ser proferido várias vezes. “Controlam tudo, a agricultura, as pessoas, estão profundamente enraizados aqui, a máfia de colarinho é apenas uma ínfima parte da rude realidade siciliana.”
Que outras facetas assume a máfia?
Gestão de resíduos – o lixo
A sujidade de Palermo não passa ao lado de ninguém que visite a cidade.
O caos ambiental vai muito para além dos incêndios ilegais de resíduos e gestão de aterros que vemos retratado em Sopranos.
Vários grupos criminosos levam a cabo operações complexas e lucrativas nas quais são enterrados ilegalmente resíduos industriais altamente tóxicos para o ambiente, para que certas empresas evitem pagar taxas de aterro, fugindo às autoridades fiscais. Acresce a isto a difícil gestão de resíduos que já por si é um desafio em cidades com uma grande densidade populacional, como é o caso de Palermo ou de Nápoles.
Resultado: o lixo espalha-se nas bermas das estradas, nos caminhos rurais, campos e prédios abandonados, constituindo um dos piores problemas de Saúde Pública de Itália.
Refugiados e crime organizado
A Sicília serve de porta de entrada a muitos migrantes que sonham alcançar uma vida melhor na Europa, no entanto, muitos nunca chegam a deixar a ilha, nem mesmo os campos de refugiados.
Mesmo as pessoas que conseguem sair dos campos, não deixam de ter problemas. O período entre a saída dos campos e a determinação do status legal leva a que muitos sejam empurrados para o crime organizado, por carência de emprego legítimo. A fim de pagar as viagens transmediterrâneas, muitas jovens são forçadas à prostituição.
Devido aos rígidos códigos de honra, a Cosa Nostra, supostamente, não lida diretamente com prostituição, nem com tráfico de drogas, porém, graças ao crescente influxo de migrantes, a máfia encontrou uma lacuna conveniente para contornar estes códigos morais: os Black Axe, gang nigeriano.
Depois do enfraquecimento da Cosa Nostra pela polícia, os Black Axe entraram em cena. A guerra sangrenta entre as autoridades e a máfia na década de 90, seguida pela queda das suas principais figuras, como Totò Riina, fez com que se criasse o ambiente ideal para que novos grupos criminosos crescessem.
As operações criminosas dos Black Axe estão subordinadas à máfia, que lhes oferece proteção e recursos para o tráfico de drogas e prostituição em troca do pagamento de um pizzo, o imposto da máfia. A fim de reforçar o status subordinado, a Cosa Nostra proíbe-os de ter posse de armas de fogo, limitando-os a armas brancas.
Todos nós conhecemos a popularidade de que as máfias usufruem, que beneficia claramente a indústria do entretenimento. No entanto, existem feridas cuja perceção escapa a quem não conhece.
Assim, despeço-me com uma lista de filmes que se aproximam da realidade italiana:
- Salvatore Giuliano (1962), de Francesco Rosi - Alla luce del sole (2005), de Roberto Fanza - La mafia uccide solo d’estate (2013), de Pierfrancesco Diliberto - Il traditore (2019), de Marco Bellochio
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