A Liga Feminista do Porto é um coletivo de ação política de mulheres para mulheres. Defendemos um movimento que seja verdadeiramente consequente, que paute pela coletividade e que influencie mudanças estruturais, em oposição ao ativismo frequentemente performativo e simbólico que domina tantos espaços de luta.
Artigo da Liga Feminista do Porto
Neste 8 de março, entendemos a situação limite em que vivem as mulheres da classe trabalhadora um pouco por todo o mundo. A crise pandémica veio agudizar as já conhecidas contradições do capitalismo tardio, ameaçando retrocessos a direitos conquistados e impondo novos desafios. Mais do que nunca, a luta não pode parar.
O Dia Internacional da Mulher Trabalhadora, assinalado todos os anos a 8 de março, deve ser para o movimento feminista uma ocasião de reivindicação e intransigência. Lembramos as mulheres proletárias russas que, em 1917, protestaram contra a fome, o desemprego e a deterioração das condições de vida para a sua classe. É sobre este legado que assinalamos este 8 de Março, com as mesmas exigências de há 104 anos: pão, terra, trabalho e liberdade.
O que a crise pandémica representou para a mulher no último ano, sobretudo para a mulher da classe trabalhadora, é de uma violência feroz. Foram elas quem mais sofreram e continuam a sofrer com esta crise, foram elas quem mais foram dispensadas e/ou empurradas para o lay-off - só entre março e abril de 2020, 9 em cada 10 empregos perdidos eram ocupados por mulheres. Mas foi também em 2020 que a ofensiva proxeneta ganhou força, colocando em causa proteções e avanços da luta feminista de outros tempos. São as mulheres pobres, imigrantes e frequentemente racializadas que são empurradas para o sistema prostitucional: números que aumentam categoricamente.
De uma violência perversa, a indústria sexual, na qual se inclui também a pornografia, representa a institucionalização da opressão, da humilhação e da coisificação da mulher. Um corpo que é sempre público - e se a pornografia e a prostituição ensinam aos homens como devem tratar as suas companheiras, pouco ou nada sobra nas relações de intimidade interpessoais senão algum nível de violência. Para muitas de nós, essa violência é frequentemente fatal.
Assim, neste 8 de março, levantamos como as nossas três bandeiras: a luta contra a indústria sexual - a pornografia e o sistema prostitucional, e a luta contra o femícidio.
Em 1992, foi publicada uma coletânea de essays da autoria de Diana Russel denominada “Femicide: Politics of Women Killing.” O termo é cunhado e, desde então, o femicídio tem sido o objeto de luta de milhares de mulheres em todo o mundo. A verdade inalienável é que a forma como a sociedade capitalista e patriarcal mata mulheres difere categoricamente da conceção abrangente de um homicídio. Uma mulher que é assassinada pela mão de um parceiro que a considerava sua propriedade é, talvez, um caso isolado - porém, milhares de mulheres que são mortas sob essa mesma circunstância em todo o mundo é uma epidemia. A violência contra a mulher, consequência apenas do facto de ela ser mulher, é uma realidade histórica e tem um caráter estrutural. Luciana Gebrim (2014) defende que esta violência é perpetuada devido à posição de subordinação que a mulher ocupa na ordem sociocultural capitalista e patriarcal. Tal relação de poder, baseada em padrões de dominação, de controlo e opressão, concluem na discriminação, no individualismo, na exploração e na criação de estereótipos, os quais são transmitidos de uma geração para outra e reproduzidos tanto no âmbito público (governo, política, religião, escolas, meios de comunicação), como no âmbito privado (família, parentes, amigos, relação interpessoais). A partir de condições históricas, são naturalizadas formas de discriminação contra a mulher e geradas práticas sociais que permitem ataques contra a sua integridade, desenvolvimento, saúde, liberdade e, em última instância, contra a sua vida. Matamos mulheres porque elas nos pertencem e elas pertencem-nos porque o seu corpo é público - e o seu corpo é público porque é corpo de mulher. Matamos mulheres porque elas são mulheres.
A pandemia, que é o assassinato em massa de mulheres, dura há tanto tempo quanto dura este sistema.
O coletivo francês “Collectif Féminicides par compagnons ou ex” foi criado em 2016, em França, de forma a retomar o trabalho que uma companheira francesa tinha já iniciado em 2012: estabelecer um meio de contagem dos femicídios em tempo real. O seu propósito era tornar pública e inescapável a situação de emergência em que viviam as mulheres francesas. Com esse fim, criaram um mapa digital interativo, onde o usuário é confrontado com diferentes pontos assinalados geograficamente, cada um representativo de uma mulher, demarcados pela localidade em que cada crime aconteceu. Cada ponto é acompanhado com uma caixa de texto com informações sobre a vítima, o crime, o agressor e o processo judicial em curso. As nossas companheiras francesas consideram que os números fornecidos pelo Ministério Público francês não representam a realidade e, de forma a estender também uma crítica à imprensa pela forma leviana e sensacionalista de tratar os assassinatos sistemáticos de mulheres, iniciaram o projeto como um objeto de luto e de luta.
Uma iniciativa similar surgiu em 2018 no México. Maria Salguero, “que não podia ficar de braços cruzados em frente a tal barbaridade” criou o “Mapa dos Femicidios en Mexico”, permitindo ilustrar os inúmeros casos de femicídios no país e a história das mulheres assassinadas desde 2016.
Assim, a Liga Feminista do Porto, que passou os últimos dez meses a reunir uma coletânea de todas as notícias que divulgavam assassinatos ou tentativas de assassinato de mulheres em circunstâncias congruentes com a tipificação do femicídio, lança agora o Mapa dos Femicídios por (ex) Parceiro em Portugal 2020.
Esperamos que esta ferramenta sirva, também, como um ponto de partida para o nosso programa: a tipificação do femicídio em Portugal.
O femicídio é o expoente máximo da opressão a que todas as mulheres estão sujeitas. Nenhuma de nós estará segura enquanto formos entendidas como propriedade pública, enquanto os nossos corpos e existências sejam lidos como da propriedade de terceiros. Mesmo quando não somos assassinadas, quando o patriarcado que ensina os homens a matar-nos não materializa a sua maior violência contra nós, muitas de nós são obrigadas a viver o resto da nossa vida com o trauma inestimável de décadas de abusos e violências.
Os agressores sexuais e femicídas são, na sua maioria, pessoas com quem as vítimas mantêm ou são obrigadas a manter relações de intimidade. De acordo com a UMAR, em 10 dos 16 femicídios registados entre 1 de janeiro e 15 de novembro de 2020, a vítima e o agressor tinham filhos em comum. Durante este período, 21 crianças e jovens ficaram órfãos de um ou ambos os progenitores devido a crimes de femicídio.
Vários países na América Latina tipificaram já a figura do femicídio nos seus códigos penais. A incorporação de um tipo penal específico contribuirá em Portugal, como contribuiu lá fora, para a proteção de uma nova geração de meninas e mulheres e para atingir transformações culturais importantes. Nomeadamente, para reunir mais conhecimento sobre as vítimas e os seus agressores, sobre os contextos das agressões e os crimes denunciados com maior frequência, de forma a compreender a real magnitude desta crise. Mais ainda, isto permitirá garantir o acesso à justiça e à possibilidade de que o Estado adote, finalmente, políticas públicas eficazes para a prevenção e a erradicação da violência contra as mulheres.
A nossa crítica estende-se ainda a muitos dos meios de comunicação social que reportam estes casos e que frequentemente criam imagens embelezadas dos agressores, branqueando os seus discursos, minimizando o seu papel enquanto agentes ativos da violência e optando por descrições floreadas e cuidadosamente criadas do homem bondoso e do crime inesperado: do qual é exemplo o assassinato de Beatriz Lebre.
O lugar mais perigoso para as mulheres pode ser a sua própria casa. Novas ou idosas, os nossos corpos não estão em segurança, nem em casa nem na rua.
Estamos em luta neste 8 de março e continuamos em luta depois dele.
Exigimos a criação e financiamento de casas abrigo públicas para mulheres violentadas, medidas de coação mais duras para os agressores, salários dignos, pleno emprego, habitação pública e de qualidade, acesso ao ensino e à saúde gratuitamente - exigimos existências dignas para todas as mulheres, para que reúnam as condições materiais necessárias e não se vejam presas aos seus abusadores por dependência financeira.
Exigimos a tipificação do femicídio por todas as mulheres brutalmente assassinadas pela violência machista que entende os nossos corpos como mercadorias de livre acesso. Esperamos que o Mapa dos Femicídios em Portugal seja uma lembrança em constante atualização de todas as companheiras que perdemos, e em nome das quais a nossa luta nunca cessará.
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