Em 2019, a Iniciativa Liberal propôs um novo mecanismo de financiamento do Ensino Superior. Em 2021, após críticas da esquerda à direita, retirou essa proposta do programa, dizendo que "o país não estava preparado". Tirar esta medida do programa e manter a proposta do cheque-ensino para o ensino secundário é incoerente, mas é reflexo da linha de raciocínio da maior parte dos partidos: quando se fala de Educação fala-se para grupos organizados. Neste caso, fala-se para os estudantes e, claro, esquecem-se aqueles que não puderam continuar a sê-lo.
de Nuno Can
A Iniciativa Liberal, partido defensor dos mecanismos de mercado, até na Educação Básica e Secundária, deixou de fora do seu programa a medida que replicava, com algumas alterações, o método britânico de financiamento do Ensino Superior. Não existe uma razão ideológica para esta alteração, o objetivo foi não afugentar uma grande parte do seu eleitorado, que beneficia do atual sistema de financiamento.
À esquerda, o fenómeno é simétrico. À esquerda do Partido Socialista, defender a propina zero sempre foi a norma, no entanto, esta tendência alargou-se ao PS. Tal como no caso da Iniciativa Liberal, esta é uma medida orientada para os seus eleitores. Todos aqueles que não foram para o Ensino Superior vão continuar a votar num partido que defenda a propina zero, mesmo que essa medida retire recursos de possíveis creches, das escolas públicas e que não faça nenhum estudante poder passar a aceder a um curso superior. O maior custo de estar no Ensino Superior é não poder trabalhar, e o segundo maior é a habitação, não é a propina.
O problema diz respeito ao confronto entre interesses organizados - os estudantes através de associações académicas e juventudes partidárias que emergem das universidades, e interesses dispersos - aqueles que não puderam chegar à Universidade e para quem não existem medidas para os trazer de volta.
Não desvalorizo o peso das atuais propinas do primeiro ciclo de estudos e percebo a preocupação daqueles que precisam de se libertar de todos os custos para continuar a estudar, no entanto, a solução para isso serão as bolsas de ação social.
Sou contra a propina zero e o atual sistema de financiamento, visto que o problema da propina zero não é ser demasiado progressista: é ser conservadora. Quando se baixa um euro das propinas, tira-se um euro da escola pública, diminuindo a importância do aluno nas Instituições de Ensino e empurrando o problema do subfinanciamento da investigação com a barriga. Quando se defende a propina zero e não as bolsas de ação social, defende-se os interesses de quem pode contribuir para financiar o ensino superior e deixa de o fazer, prejudicando a qualidade global do ensino superior público. E se acontecer que essa qualidade se torne largamente inferior à das universidades privadas, sabemos quem poderá pagar as propinas no privado.
Pensemos num mundo em que a universidade é uma grande ilha e à sua volta existem pequenas ilhas menos desenvolvidas e com mais dificuldades. Depois de se entrar na ilha central, avistam-se todos os horizontes, sobe-se pelo elevador social. Claro que é sempre mais difícil para uns do que para outros e a injustiça não desapareceu, mas estar na ilha é sempre mais confortável do que não estar.
Hoje, são menos de 40% aqueles que chegam à grande ilha. Em geral, são aqueles que vêm das melhores ilhas, ou aqueles que vêm das melhores casas entre as ilhas menos boas. Para eles, as pontes estavam construídas, para alguns com passadeiras estendidas e ainda assim sofreram, estudaram muito e ficaram ansiosos até lá chegar. Dos outros, aqueles que não tiveram pontes, que nunca saíram da ilha porque na família é assim mesmo, ou porque mesmo que nadassem muito nunca viriam à tona, ninguém se lembra. E não existe o “Dia Nacional dos que queriam ser Estudantes e não podem”. Que seja hoje esse dia, também.
Claro que é importante defender aqueles que, dentro dos 40% que entraram na ilha, estão com um pé dentro e um pé fora, que não conseguem levantar a cabeça para ver os horizontes a que a ilha lhes devia dar acesso. Porém, é preciso ter cuidado para que, na tentativa de ajudar essas pessoas, não se degradem mais as pontes até à ilha e não se deixe de investir mais em novas e melhores pontes.
Em parte, as bolsas de ação social escolar procuram resolver esse problema. Se as bolsas são escassas ou o processo é demasiado burocrático, lutemos para a aumentar o seu número e tornar o processo mais célere.
Acabe-se com as parábolas. Portugal é um dos países com menos anos de escolaridade acumulados. Isto é, os nossos avós estudaram muito menos do que os avós dos jovens ingleses e alemães e isso faz diferença. Portugal precisaria de um Ensino Superior mais forte do que a maior parte dos países europeus para poder reduzir o seu défice de competências. A atual média de anos de escolaridade portuguesa, cerca de 9.2 anos (2017) foi atingida pelos EUA há quase 70 anos, pela Alemanha e pelo Reino Unido há cerca de 30 anos. É evidente que isto nos remete ao passado e é claro que não podemos corrigir isso, contudo, podemos melhorar o presente e devíamos ter a ambição de ser o país da Europa com a geração mais qualificada. Ser a geração mais qualificada de sempre do nosso país sabe a pouco num país que demorou tanto a olhar para a Educação. Devemos querer ser a geração mais qualificada da Europa para poder devolver ao nosso país o esforço do pós-25 de abril em construir um sistema de Educação praticamente do zero, pago pelos nossos pais e avós. E, como é óbvio, para termos uma sociedade mais desenvolvida e justa.
Deve ser uma prioridade criar um sistema de financiamento através de um empréstimo dado pelo Estado, ou pelo setor privado e assegurado pelo Estado para financiar a totalidade das propinas. Este sistema garante que aqueles que não consigam emprego ou que não consigam um emprego que pague acima de determinado valor, não paguem um único cêntimo. Isto protege estudantes de áreas tipicamente menos bem remuneradas ou com mercados de trabalho que gerem grandes disparidades, como o mercado artístico. Ao mesmo tempo, garante que aqueles que decidirem estudar, usando recursos do Estado, e depois legitimamente queiram trabalhar no setor privado ou no estrangeiro, contribuam para financiar o Ensino Superior dos futuros alunos.
Atualmente, os estudantes internacionais pagam propinas mais altas, uma vez que o sistema de Ensino Superior se financia sobretudo através do Estado Central e que isso pressupõe o pagamento de impostos. O mecanismo de financiamento através de empréstimo permitiria que estudantes de qualquer país pudessem integrar o Ensino Superior em Portugal e assim, atrair mais mão de obra qualificada e diminuir o problema da pirâmide demográfica invertida.
Esta proposta é geralmente recusada, com a ideia de que se sugere que aqueles que não arranjarem emprego, ou que tiverem empregos menos bem remunerados, serão visitados por agiotas para recuperar o valor das propinas. Não é isso que acontece.
Este mecanismo permite ao Estado, por exemplo, recuperar o investimento em alunos que puderam estudar nas melhores escolas, tiveram explicadores, entraram na Universidade pública financiada pelo Estado e acabaram no mundo financeiro com uma remuneração muito superior à média. Quem não puder pagar, não pagará. Esta medida deve ser combinada com tetos máximos e maior independência financeira por parte das Instituições de Ensino Superior, e claro que o Estado continuará a financiar uma parte do Ensino Superior. Podem e devem ser perdoadas as dívidas, ou parte delas, a jovens que decidam trabalhar no setor público. O mais importante é que os estudantes assinem um contrato com o Estado que lhes diz exatamente aquilo que irá acontecer até ao último dia de contrato, sem alterações a meio.
Esta visão resolveria os problemas daqueles que, dentro da “ilha”, não conseguem pagar as propinas e a habitação. Permite criar incentivos financeiros às Universidades sem obrigar a que deixem de ser Públicas.
Todavia, o melhor é que a medida libertaria recursos para preparar as “pontes”. Ou seja, para investir mais na escola pública. E permitiria aumentar o perímetro da “ilha”, aumentando o número de vagas nas Universidades. Seria uma forma de resolver o problema dos Estudantes e daqueles que, para já, deixaram de o ser porque não tiveram outra opção. Feliz Dia Nacional do Estudante.
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