Pensar no jogo sem o seu dono é impensável. Habituei-me a vê-lo como o Fim da História, como a perfeição alcançada precisamente na altura em que comecei a acompanhar futebol. De certa maneira, Messi acompanhou-me desde que me lembro quem sou e porque gosto do que gosto.
Texto de Vasco Maldonado Correia
Pensei muito no que iria escrever quando chegasse a minha vez de presentear os leitores do Crónico com uma crónica desportiva. Numa altura em que o presidente do meu clube faz manchetes por ir a comissões de inquérito, em que os convocados da Seleção me fazem bocejar ou em que as constantes reviravoltas hipócritas na gestão da permissão de adeptos nos estádios em Portugal me fazem levar as mãos à cabeça, assuntos não faltavam. Além disso, os deuses do futebol acharam por bem acentuar uma crise mundial com o acordar do sono de um gigante do futebol português – cujo nome não me atrevo a pronunciar - que eu gostava muito que continuasse adormecido, e decidiram usar um antigo capitão do Benfica para liderar a revolução. Podia escrever sobre qualquer um destes assuntos, mas prefiro ser feliz. Assim sendo, escrevo sobre mais uma época de um senhor sobre quem deviam ser escritas todas as crónicas desportivas: Lionel Messi.
É-me relativamente complicado falar sobre Messi. O cronista desportivo que mais gosto de acompanhar, Barney Ronay do The Guardian, um entusiasta messiânico que não se cansa de escrever sobre o astro argentino, explica porque é que o faz com tanta regularidade: “I make no apology for writing about him again here. Firstly, because Messi’s talent is endlessly divisible. You never get to the bottom of it.” A genialidade de Messi é grande o suficiente para criar paradoxos destes, fazendo com que a razão que leva alguém a querer escrever tudo o que for possível sobre ele, é a mesma razão que leva alguém a fechar-se em copas sobre a sua paixão platónica pelo mais espetacular jogador de futebol que já nos agraciou com a sua presença.
O problema é mesmo este: as demasiadas coisas que tenho para dizer e, acima de tudo, o receio de não ter capacidade para as explicar. Há certas coisas no mundo – precisamente as que o tornam mais colorido – de que gostamos demasiado para as tentarmos pôr por palavras. Messi é isso tudo para mim e tudo o que sinto quando se ilumina o seu nome no meu cérebro é demasiado meu para o tentar partilhar: se o fizer com regularidade sei que provavelmente só me restará a desilusão de perceber que não consegui passar a minha imagem idealizada ao meu interlocutor. Quem fala sobre Messi em público tem a responsabilidade de o espalhar pelo mundo, qual palavra de Deus, e esta sua omnipotência exponencia a responsabilidade para níveis capazes de assustar até o mais fiel dos marinheiros. Permitam-me então que vos tente transmitir uma das partes mais importantes da minha vida, sabendo que ficará quase tudo por dizer. Sem pressão.
A época de 2020/21 começou para o Barcelona com estrondo: depois de anos e anos de instabilidade política e desportiva ao nível de um pequeno país, Messi avisou o clube que estava de saída. Falava-se do Manchester City de Guardiola como próximo capítulo numa jornada que tínhamos esquecido que tinha páginas para virar. Apesar de bate-bocas na praça pública, do apoio de antigos colegas e de rumores atrás de rumores sobre os contratos milionários que esperavam o capitão blaugrana em terras de Sua Majestade, Messi lá acabou por ficar. Assombrado por uma direção cuja própria existência era auto-sabotadora e um treinador com a sensibilidade tática de uma bigorna a cair numa casa de espelhos, não se augurava mais a Messi do que era costume: abandonado à velha pobreza coletiva do Barcelona, o seu brilho individual teria que servir como abre-latas eterno naquela que ainda é, até ao momento, a última época do seu contrato.
E assim foi servindo. Depois de um início de época a bater recordes negativos, que chegou a ver o Barcelona em 5º lugar na viragem do ano, foi a genialidade de Messi a carregar a equipa, a encontrar o caminho para vitórias que de outra forma não aconteceriam. O que foi Leo esta época é também uma boa representação do que tem sido a sua evolução: o jogador que, aos poucos, de desequilibrador se foi transformando em organizador, veio aos confins do mundo buscar a moral da sua equipa e praticamente sozinho levantou-a e, por uns tempos, o título da Liga espanhola deixou de ser uma miragem.
Ligo muito pouco a números e falar em números com Messi é inteiramente redutor e enganador. Não é num registo informático que se encontra a sua genialidade, mas sim no que vai fazendo em campo e na qualidade com que decide e executa cada gesto e cada ação. Ainda assim, para os mais céticos e desatentos, a influência da Supernova que muitos julgam moribunda foi a que costuma ser: só no ano de 2021, tem 29 jogos, 28 golos e 9 assistências. Coisa pouca.
Quanto à qualidade da execução, arrisco-me a dizer que metade dos golos que marcou esta época ficariam marcados na carreira de qualquer mortal como um dos melhores momentos da sua vida. Para si, momentos como esses conjugaram apenas mais uma tarde banal de domingo. O golo que marcou na final da Taça do Rei, em que Messi desce até ao meio-campo do Barcelona para resolver uma inferioridade numérica, pega na bola e progride sozinho, ultrapassando meia equipa do Athletic Bilbau, tabela com De Jong para descobrir o espaço ideal na área, tira da frente 2 defesas que se lhe opunham e finaliza com uma calma e frieza quase hilariante, podia ser sem sombra de dúvidas o melhor golo da carreira até de um Bola de Ouro. Para si, nem sequer foi o melhor golo que marcou ao Athletic Bilbau numa final da Taça da Rei. É este o nível.
E podia aqui continuar a falar sobre mais algumas das suas façanhas, podia revisitar a sua carreira e olhar com nostalgia para o jogador que já foi, notando euforicamente que esse jogador ainda vive no Messi mais cerebral e todo-o-terreno que vemos hoje, podia abordar a sua rivalidade com Ronaldo, podia lembrar os momentos em que quase tocou o céu, e os momentos em que o ultrapassou. Mas o que me interessa mais é dizer que estou assustado. Estou aterrorizado, porque Messi acabou mais uma época, não vai para novo – apesar das suas ações em campo indicarem o contrário – e toda a gente parece lidar com esse facto muito melhor do que eu. Aqui por 10 anos, Messi já não preencherá o campo, já não vai ser possível mudar de canal e vê-lo a serpentear por entre adversários. E pela análise superficial que faço da sua personalidade, o ocaso pode até acontecer mais cedo.
Pensar no jogo sem o seu dono é impensável para mim. Habituei-me a ver Messi como o Fim da História, como a perfeição que tinha sido alcançada precisamente na altura em que comecei a acompanhar futebol e, por isso, de certa maneira, Messi acompanhou-me desde que me lembro quem sou e porque gosto do que gosto. Vê-lo aceitar prémios melancólico, avisando que não durará para sempre, ou notificar o clube que sempre representou que quer pôr um ponto final na relação, deixa-me numa profunda crise existencial que não me deixa dormir, nem sequer pensar noutra coisa. Há uns tempos, tomei a decisão de só voltar a perder um jogo de Messi se não tivesse mesmo alternativa. Numa altura em que o futebol se começou a tornar mais repetitivo e hediondo para mim e em que me chateio só com a ideia de ter que ver o meu clube jogar, é ele que me vai apaziguando, pacífico na certeza de que com Messi, nunca nada é igual.
O jogador mais completo que alguma vez vi jogar, o maior desequilibrador, organizador, criativo, finalizador e entertainer, está cada vez mais perto de se despedir de nós, fez mais uma época estrondosa, e poucos falamos dele. Em breve, parafraseando um certo ditador português, “teremos que nos habituar a ser governados por homens comuns”. De certa maneira, Messi, o homem que é “Maradona todos os dias”, segundo diz Valdano, parece destinado a tornar-se aquilo que muitos jogadores hoje são, uma memória nostálgica de um passado em que éramos mais felizes, gostávamos mais de futebol, em que o futebol era magia e os criativos reinavam em oposição aos homens do físico e dos números. Na minha cabeça, Messi viverá para sempre. Longa vida ao Rei.
PS: Já passaram alguns dias, mas muitos parabéns aos atletas formados no Benfica, Rúben Amorim, João Pereira e Nuno Santos, pela conquista do campeonato. A formação do Seixal continua a encantar.
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