O problema é este: as pessoas adoram fazer parte de ondas de solidariedade e de compaixão. Sempre nas redes sociais, onde toda a gente as pode ver a ser solidárias. Adoram ler os pormenores chocantes acerca da miséria dos outros, saber a sordidez e a tristeza que envolve a situação. As pessoas adoram espetáculo e a própria caridade tem de ser espetacular.
Crónica de Cecília Faria
Estudante de Sociologia, NOVA - FCSH
Ao longo destes últimos dias tenho-me deparado com várias publicações de influencers no Instagram que sugerem todo o tipo de atividades lúdicas para passarmos o tempo e nos distrairmos dos pensamentos depressivos que, naturalmente, surgem durante este período em que nos encontramos sozinhos. Encorajam-nos a ser fortes e a «pensarmos positivo», porque «o que não nos mata torna-nos mais fortes». Muitas destas publicações que procuram transmitir força e esperança têm como pretexto, na verdade, publicitar os mais variados produtos e serviços: lojas online, toda a espécie de aplicações para o telemóvel, marcas de roupa, produtos de beleza, supermercados e tudo o mais que possam imaginar. «Ninguém está a passar por uma fase fácil» escrevem nas descrições das fotos a posar fitando a câmara. Até uma pandemia e os confinamentos são um bom pretexto para fazer publicidade.
Todas as vezes que saio à rua, sem exceção, cruzo-me, inevitavelmente, com sem-abrigo. Muitos não estão a pedir, mas há outros que o fazem e que seguram cartazes e olham para nós quando passamos. Na Avenida da República, há largos meses que todos os dias encontro sentado em frente ao edifício da Caixa Geral de Depósitos, um homem com sessenta e muitos anos que segura um cartaz que diz: «Com a minha idade não consigo arranjar trabalho».
Há pouco tempo, surgiu nas redes sociais uma «onda de solidariedade» por um casal com três filhos que, tendo ficado os dois desempregados devido à pandemia, estavam a viver com 400€ por mês numa roulotte. Esta história foi relatada num artigo da revista SÁBADO. Gerou muita compaixão e várias pessoas doaram dinheiro, tendo-se angariado 39 mil euros. Pergunto-me quantas pessoas das que contribuíram para os 39 mil euros teriam dado dinheiro a Paulo, o pai dessa família, se ele estivesse a pedir na rua. Todos os dias saímos de casa e deparamo-nos com situações de pobreza extrema, mas só no Instagram somos capazes de nos compadecer da pobreza e da miséria dos outros. A pobreza está à nossa vista nas ruas, estende-se à frente dos nossos olhos, mas passamos por ela indiferentes. Quando chegamos a casa e nos sentamos no sofá a percorrer o feed das nossas redes sociais “descobrimos” que há pessoas a passar por situações horríveis e o nosso coração derrete-se.
Os estafetas de empresas como a Glovo e a Uber Eats, que todos andamos a utilizar alegremente, têm um trabalho altamente precário e, muitos deles, vivem em condições muito difíceis. São empresas como estas que trouxeram o «novo normal» para o panorama laboral português: trabalho a recibos verdes, sem contrato e sem qualquer compromisso; flexibilidade total e desresponsabilização da empresa pelos seus trabalhadores (aliás, a Uber Eats considera os estafetas como «parceiros»); remuneração unicamente em função do número de horas de trabalho executadas e das avaliações dos clientes. Todos eles são potenciais Paulos e Sofias prontos a ser atirados para o desemprego.
Há muitas histórias de pobreza e de sofrimento em Portugal. Porém, muitas carecem dos pormenores impressionantes e sentimentalistas que as pessoas gostam de pôr a circular em publicações nas redes sociais e através das quais procuram chocar e sensibilizar os outros. São histórias banais de pessoas cansadas e desiludidas que não têm nada de heroico e que não podem terminar com um salvamento coletivo.
Um casal jovem de 30 e poucos anos que ficou sem trabalho com a pandemia e que vive do subsídio de desemprego. Por enquanto ainda conseguem pagar a renda e não passam fome. Não têm filhos, mas as perspetivas futuras de trabalho e de estabilidade económica são escassas, se não nulas e, portanto, a possibilidade de constituir família não está para breve. Já tiveram de mudar de casa muitas vezes, porque não conseguem pagar uma renda muito alta e por terem sido mandados embora pelo senhorio (da última vez este pretendia vender o andar que lhes alugava, porque a renda «tão baixa» que lhes pedia não compensava manter o prédio). Esta pandemia e as restrições a ela associadas ameaçam continuar até meio deste ano de 2021. As repercussões a nível económico serão desastrosas, como apontam todas as previsões, e far-se-ão sentir por essa altura, quando eles já estiverem desempregados há praticamente um ano. Esta história não tem nada de espetacular e de gritante que possa ser colocado em maiúsculas numa publicação nas redes sociais de modo a chocar as pessoas.
Este é um casal amigo dos meus pais, mas podia ser a história de qualquer outro casal jovem que tenha ido para o desemprego ao longo do último ano de 2020. O choque e o horror das pessoas perante a história da Sofia e do Paulo são bacocos e gratuitos. Mostram o quão desligados estamos da realidade e da vida à nossa volta.
O problema é este: as pessoas adoram fazer parte de ondas de solidariedade e de compaixão. Sempre nas redes sociais, onde toda a gente as pode ver a ser solidárias. Adoram ler os pormenores chocantes acerca da miséria dos outros, saber a sordidez e a tristeza que envolve a situação. As pessoas adoram espetáculo e a própria caridade tem de ser espetacular. Dar uma moeda a um sem-abrigo não tem nada de heróico, sabemos que esse nosso ato não vai conseguir mudar a vida daquela pessoa. Mas apoiar uma causa nas redes sociais dá-nos a sensação de que tudo vai ficar bem, de que tudo se resolveu, dá-nos a sensação de dever cumprido. Por muito falsa que essa sensação seja.
No dia seguinte tudo volta ao normal. Os influencers fazem mais uma publicação patrocinada por uma empresa que paga mal aos seus trabalhadores e que assenta em trabalhos precários. Aqueles que doaram dinheiro gostam dessas publicações e, quiçá, vão comprar os produtos dessas empresas.
O projeto jornalístico Divergente publicou a 27 de Abril de 2020 um web-documentário intitulado Demasiado novo para ser velho. Retrata quatro histórias: da Guiomar, do Rui, da Alice e do António. Estes dois homens e estas duas mulheres contam-nos o seu percurso de vida e explicam-nos como, com cinquenta e cinco anos ou mais, se encontram desempregados há vários meses. Os seus relatos sobre a procura de emprego e o cansaço acumulado pela situação desenrolam-se ao longo da reportagem. São histórias tristes e trágicas, mas não são sensacionalistas. Não há nenhuma maneira imediata de ajudar estas pessoas e de ficarmos reconfortados, porque o que as suas palavras nos transmitem são uma derrota e uma desilusão irreversíveis. Elas falam da podridão do sistema e de algo que não se consegue resolver através de doações nas redes sociais. Porque é muito mais complexo do que isso. É o próprio sistema que não as deixa viver, que as excluiu do mercado de trabalho e, portanto, de uma vida digna.
O problema não está no facto de as pessoas se compadecerem da história do Paulo e da Sofia, uma verdadeira história de sofrimento. O problema está na ilusão que as redes sociais alimentam e ampliam de que somos todos uns heróis e de que, no final, fica sempre tudo bem. Porque não fica.
Este círculo vicioso de crença nas redes sociais como mecanismo de resolução das injustiças através de ondas de compaixão e de solidariedade impede e constantemente adia as mudanças estruturais. Assim, as pessoas continuam a acreditar que de onda de solidariedade em onda de solidariedade se vão resolvendo os problemas da sociedade e continuam a aclamar as redes sociais como o instrumento salvador que pode fazer a diferença e, quem sabe, mudar o mundo. Assim, mais histórias como a do Paulo e da Sofia irão surgir – porque o problema, que é estrutural e complexo, não foi resolvido – e mais ondas de solidariedade surgirão também para salvar os protagonistas dessas mesmas histórias.
Ficamos todos muito felizes por a Sofia e o Paulo terem sido ajudados. Os posts de vitória feitos após a angariação fazem-me confusão e deixam-me a pensar. Muito se tem falado dos malefícios das redes sociais, um dos principais é este: vivemos imersos na nossa bolha do Instagram e Facebook onde, profundamente autocentrados, achamos que aquilo que vemos no feed das nossas redes sociais é a realidade e representa a normalidade.
De vez em quando, surge uma história trágica e ajudamos um bocadinho. Passado uns dias, sentimos que ficou tudo bem e nunca mais voltamos a pensar no Paulo e na Sofia. As redes sociais são uma máquina que serve para nos fazer sentir bem connosco próprios. Isto não é exceção: fazer-nos pensar que através do Instagram e do Facebook tudo tem solução e se consegue resolver. Fazer-nos acreditar que a vida é um conto de fadas e que o Paulo e a Sofia «vão viver felizes para sempre».
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