Hoje em dia somos todos empreendedores. Ou queremos ser. Ou sentimos uma aversão social ao sermos apenas jovens, a termos o nosso primeiro emprego, e a vivermos uma vida ambiciosa conscientes de que há limitações de várias índoles.
por Maria Francisca
Caros leitores, sejam bem aparecidos! O tempo urge e, se não vos escrevesse, arriscar-me-ia, em breve, a perder o título de “cronista”. Da mesma forma, se hoje não trabalhar até tarde, ou até o fizer, mas permanecer com este ar revigorado de quem descansou no fim de semana, habilito-me a ser chamada de “preguiçosa”. E se, por lapso ou irreverência, não recordar aqueles com quem me vou cruzando dos meus feitos, serei, tão-só, uma jovem normal. “E que seria!”.
Atravessamos uma era que será, decerto, recordada daqui a uns anos, não tão saudosamente como nos parece, como a era do ego. Da eternização do “eu”, do “meu”, do “sou”. Das conversas que, lá para o meio, desvendam que fundei uma associação, que fiz parte de um grupo, que fui reconhecida pelo meu mérito, que fulano e beltrano viram em mim o que não viram nos outros. Vivemos numa era em que, conscientemente ou não, somos parte de uma competição (feroz!) pela superioridade, pela experiência mais “fora da caixa”, pelo sonho mais louco e, ainda mais importante que isso, saibam todos que eu o concretizei! Assistimos ao surgimento de novas profissões, à preterição no dicionário jovem da palavra “impossível” pelo conceito “se os outros conseguiram!”, ao frenesim das ideias e ao poder desenfreado da juventude!
Vivemos uma época que, permitam-me a confidência, me parece perigosa. Não o é para os jovens que estudaram e que têm em casa apoio familiar e um lar para onde regressar, caso os seus projetos fracassem: é para os outros. Aqueles que não moram nas zonas prósperas do país, e/ou cujos pais não são licenciados, e/ou não têm possibilidades de os sustentar durante muitos mais anos. Digo isto porque me tenho deparado com um conjunto imenso de conteúdo digital de jovens de sucesso a incentivarem, através da bajulação do seu ser, outros jovens a lutarem pelos seus sonhos, dando uma ideia, q.b. descabida, de que tudo é possível se acreditarmos. Que basta lutarmos pelas coisas, arriscarmos, quiçá todos possamos abrir a nossa própria empresa… Quem me dera que fosse verdade! E temo que este discernimento que agora me assolou não seja instantâneo e, acima de tudo, não se sobreponha à voz de jovens que gritam o seu sucesso “apenas com um pequeno investimento inicial!”, à vontade de concretizar sonhos, à pressão de fazer qualquer coisa diferente, à ideia, fantasiada ou não, de que um percurso inovador será inevitavelmente distinto.
Hoje em dia somos todos empreendedores. Ou queremos ser. Ou sentimos uma aversão social ao sermos apenas jovens, a termos o nosso primeiro emprego, e a vivermos uma vida ambiciosa conscientes de que há limitações de várias índoles. E que não temos todos as mesmas condições. E que ser inevitavelmente afortunado é mais fácil do que ser infelizmente carenciado. Mas, na voz dos que têm sucesso, tal não interessa!
Não interessa quem sou, o que já fiz ou o que digo para mim mesma, a forma (ridícula ou pretensiosa) como me motivo ao espelho. Ou, factualmente, se digo aos outros que podem lutar pelos seus sonhos. Porque eu não tenho milhares de seguidores nas minhas redes sociais e porque não sou uma “formadora de opinião” (ou outra expressão tecno cool traduzida): mas há quem seja. E esses deveriam preocupar-se. Em não criar falsas expetativas, em não incentivar a saída da faculdade, em não procurar simplificar percursos que, certamente, foram sinuosos, debruçando-se apenas sobre a parte em que venceram.
Termino parafraseando o Bo Burnham, humorista que me apraz, e que, talvez pelo sentido de humor peculiar, me marcou: não peçam conselhos a pessoas que tiveram muita sorte na vida!
(na capa, Narciso, de Michelangelo Merisi detto Caravaggio)
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