Esquecemo-nos, porém, que os sonhos não nascem do nada. Os nossos sonhos nascem de uma vontade inconsciente, contudo real, de mudar algo que nos é muito íntimo. E é aí que entra a Carolina.
Crónica de Joana Mouzinho, estudante de Estudos Gerais na UL
Há tantas coisas e pessoas sobre as quais penso ou já pensei escrever. Nenhuma delas foi alguma vez a minha irmã Carolina.
Muito mais facilmente falaria da minha irmã Maria. Sentada eu na secretária do quarto dela, assombrada pelo enorme mapa do mundo na parede, pelo cocar pataxó da Amazónia, pela imagem de Robert Doisneau – constantes lembranças da vida rica vivida por esta – não consigo, contudo, evitar olhar para as folhas afixadas à frente da secretária onde me sento. De tudo, são estas, julgo eu, que melhor simbolizam o que a minha irmã representa aos meus olhos.
À esquerda, um papel a5 oferecido pela minha mãe que diz:
“Esperar é a grande sabedoria. De nada vale querer mais cedo o que tem o seu tempo.”.
- Júlio Roberto
À direita, um papel a4 com um screenshot de um email:
“MATRICULA MESTRADO INTEGRADO EM MEDICINA UALG
Exma Srª Maria Mouzinho
Vimos por este meio informar que houve desistências da matrícula na 8ª edição do MIM por parte de um candidato selecionado, sendo a Maria a candidata suplente seguinte, deste modo queremos questionar se pretende matricular-se na 8ª edição do MIM.
Após confirmação, enviaremos os detalhes para proceder à matrícula (…)”.
Muitas vezes digo a pessoas que vou conhecendo que a minha irmã é a minha maior inspiração. Não é vergonha, mas orgulho, quando me apercebo repentinamente que lhe sigo as pegadas.
A minha mãe, num dos muitos vaipes que lhe ocorrem, decidiu certo dia aventurar-se pelos caminhos da espiritualidade. Nunca me esquecerei do dia em que me relatou a carta astral da Maria, pois algo de muito peculiar e familiar me afetou particularmente. Entre muitas coisas, lembro-me que me disse que “a Maria ora é uma fonte de água luminosa, resplandecente, ora uma lagoa escura de águas profundas, onde nada mexe e tudo remoí.” De tal maneira encaro eu a minha irmã em toda a sua grandiosidade. Uma mulher que se aventura pelos íntimos da emoção humana não porque o deseja necessariamente, mas porque não encontra dentro de si um outro modo de vida que lhe afague a grande crise existencial em que eternamente habita. Desde muito cedo que esta soube que queria seguir Medicina. Desde muito cedo, também, descobriu que nada lhe é dado facilmente. Desbravou caminho desconhecido, caminho esse mais tarde percorrido por mim mesma, saindo de casa aos dezasseis anos com a ânsia de compreender o mundo. Muitos anos mais tarde, viu o seu sonho de seguir Medicina obstruído por limitações infortunas da vida, mas não desistiu. Uma década depois, como confirma o email acima referido, conseguiu. Como sempre, porém, em circunstâncias ‘pouco desejadas’. Nada disso importou no grande plano da vida.
Esquecemo-nos, porém, que os sonhos não nascem do nada. Não nos vêm como uma miragem enquanto dormimos. Os nossos sonhos, concluo eu, nascem de uma vontade inconsciente, contudo real, de mudar algo que nos é muito íntimo. E é aí que entra a Carolina.
Nascida três anos depois da Maria, a Carolina rapidamente demonstrou ser muito diferente. Era autista. Subitamente envolvida num mundo que pouco conhecia, a Maria, certamente desconsolada, cresceu numa grande angústia – observando e lidando diariamente com as profundas lacunas de compreensão que perpetuamente limitariam a relação entre as duas irmãs. Creio que foi por esta razão que a Maria tão fervorosamente percebeu que queria enveredar pelo caminho da Medicina. Pela Carolina.
A verdade é que, à medida que fui crescendo, nunca fui capaz de compreender na totalidade o impacto que a Carolina tinha tido em mim. Nunca fui capaz de entender de que forma a minha vida, coexistindo diariamente com o autismo, haveria de impactar a pessoa que eu me tornaria. Escrevo este texto, nesta altura particular da minha vida, porque compreendo agora, mais que nunca, que a pessoa que sou hoje é tanto definida pelo o que a Maria me ensinou, como pela Carolina. É de frisar que nunca serei plenamente capaz de compreender de que maneiras a Carolina me ajudou; mas este texto é um início, a meu ver, de uma reflexão que durará uma vida inteira.
Por decisão divina, como gosto de pensar, é a única de quatro irmãos a ter olhos verdes. Odeia levantar-se cedo, e não consegue sair de casa sem garantir que todas as escovas de dentes estão viradas para o mesmo lado – para grande frustração da minha mãe. Na escola, come vegetais e fruta, coisa que NUNCA faria em casa. Certo dia há uns anos, por grande acaso, decidimos mostrar-lhe o Youtube. Desde esse dia que vê e revê diariamente centenas de vídeos da Disney que vai encontrando nos recomendados. Em todos os nossos aniversários, é ela que sopra as velas; pelo que voltamos a acendê-las para soprarmo-las nós.
A Carolina, no meio de uma vida frequentemente caótica, ensinou-me a ter calma. Ensinou-me a ser gentil. A respirar fundo, a saber retirar-me da minha própria bolha de ansiedades e mini problemas; a relembrar-me que os outros também existem. Passo muitas vezes por ela em casa e peço-lhe agressivamente para pôr a música mais baixa; para se calar; para fechar a porta (todas estas frases que esta já reconhece e distingue), para ser surpreendida com uma agitação instantânea própria de quem reconhece frustração, mas não percebe de onde vem, nem porquê. A Carolina ensina-me nestes momentos que as nossas palavras e ações violentas, desprovidas de consciência, provenientes de um ritmo de vida acelerado nada mais provocam senão uma resposta igualmente despropositada e carregada de incompreensão. Ela fica agitada, confusa. E eu, com vontade de retomar o que estava a fazer, fui aprendendo a desacelerar, a dar-lhe as mãos e a respirar fundo. E naquele micro-momento, dei um passo atrás e desconstruí a carga emocional que me obrigara a agir impulsivamente.
Mais, a Carolina ensinou-me a procurar ouvir os que não se fazem ouvir tão facilmente, como eu, que não só gosto de falar como gosto de falar alto. Ensinou-me muito cedo que não somos todos iguais. Que a quem não se faz ouvir deve-se particular atenção. Lição que mais tarde vi aplicar em contextos muito diferentes, mas legítimos. Foi por a Carolina não saber falar que eu fui obrigada a perceber a importância da minha própria voz. Foi a minha irmã que me ensinou a responsabilidade que carrego por conseguir expressar a minha opinião, ao que me preocupei cedo em perceber exatamente qual a minha opinião sobre os mais variados tópicos. Quando desde pequena vi a minha irmã chorar e gritar sem conseguir compreender a razão, senti que se tornara o meu dever sentir a sua dor; ao que continuo, muitas vezes, sem conseguir perceber a razão da sua angústia interior.
A Carolina ensinou-me a abdicar. Desde o meu próprio telemóvel porque ela o queria usar, a abdicar da guloseima que havia comprado para mim porque ela decidiu que a queria. Todos nós na minha família nos habituámos ao desapego com relativa tranquilidade. Quer seja ao desapego de objetos físicos, como ao desapego de expectativas e vontades. Muitas vezes vejo a minha mãe chegar a casa cansada e tudo o que esta deseja é fazer tricô enquanto ouve o Eixo do Mal. Contudo, se a Carolina está maldisposta, instaura-se o caos em casa; e lá se vão quaisquer expetativas de uma noite tranquila. Aprendemos com o tempo, que a vida torna-se mais calma quando nos desprendemos do que queremos para nós próprios, e começamos simplesmente a controlar o barco consoante a agitação marítima que vemos à nossa frente.
Acho que posso concluir, analisando o que me foi naturalmente escorrendo pelos dedos, que a minha irmã me ensinou a ter atenção, a concluir que nada se trata apenas de mim como indivíduo e que, mais importante ainda, não conseguiríamos nunca viver isolados; que o indivíduo que todos nós nos julgamos ser – esta imagem de “eu” que tão apaixonadamente alimentamos – colapsa quando deixamos de ter em conta como nós próprios nos enquadramos na sociedade em que vivemos. Tal como a minha irmã certamente viveria menos bem não fossem os cuidados e a atenção que lhe dispomos, também eu viveria menos plenamente não fossem os constantes ensinamentos silenciosos, que exatamente por serem silenciosos me transpõem para uma dimensão à qual eu nunca teria acesso vivendo num mundo de tanto ruído.
Obrigada Carolina.
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